Quando a polícia começou a subir os degraus da arquibancada, os torcedores da Gaviões da Fiel deram-se os braços e fecharam o caminho. Os soldados da Polícia Militar ainda tentaram forçar a passagem mas, nas fileiras de trás, milhares de outros corinthianos, braços dados, formando uma massa compacta, começaram a gritar, ameaçando descer as escadarias do estádio do Morumbi. O comando do policiamento deve ter avaliado a situação e dado uma contra-ordem, porque os PMs recuaram, desistindo de chegar até nós.

 

– "Eles estavam falando da nossa faixa"- rádio de pilha colado no ouvido, boné e camiseta do Corinthians e um sorriso nos lábios, o torcedor a meu lado informava a reação no estádio. Eu jamais o vira antes e nem o encontrei depois, mas nunca o pronome possessivo na primeira pessoa do plural me pareceu tão saboroso.

"Anistia, ampla, geral e irrestrita" – dizia a faixa, e o fato dele a chamar de "nossa" tinha, para mim, pelo menos, um significado que ultrapassava em muito aquela fugaz solidariedade que se estabelece nos campos de futebol entre torcedores do mesmo time: a bandeira era minha e da torcida do Corinthians.

A idéia surgiu em uma conversa na redação de Veja, onde trabalhávamos eu e o Chico Malfitani. Não lembro bem quem a teve primeiro, mas creio que foi ele – um dos fundadores da Gaviões da Fiel. Naquele segundo semestre de 1978, a campanha pela anistia começava a crescer junto às entidades da sociedade civil, artistas e políticos, mas não chegara à população em geral, que ainda tinha na cabeça a imagem dos opositores do regime militar como "terroristas, assassinos de pais de família", divulgada pela ditadura.

Nós, do Comitê Brasileiro pela Anistia, formado inicialmente pelos parentes de presos políticos, no escritório do Luiz Eduardo Greenhalgh, tentávamos desfazer essa imagem através de um cartaz – esse, sim, idéia minha – invertendo o sinal e, utilizando a mesma fórmula dos cartazes de "Procurados" da ditadura, mostrando quem eram os desaparecidos políticos. O cartaz teve um impacto bastante forte nos grupos comprometidos com a campanha, mas faltava avaliar sua repercussão junto ao povo. E foi aí que surgiu a idéia de levar a faixa ao estádio do Morumbi.

Como a idéia era do Chico Malfitani e minha, nós dois ficamos encarregados de "pendurar o sino no pescoço do gato", com a ajuda do professor Carlos Mac Dowell, que se apresentou como voluntário. Para isso foi escolhido um clássico – o jogo Corinthians x Santos – para a manifestação, enquanto o Luiz Eduardo Greenhalgh ficaria de plantão para o caso de um de nós ser preso. O Malfitani combinou com a direção da Gaviões da Fiel, mas no dia do jogo ele teve um problema pessoal e só conseguiu chegar ao estádio minutos antes da entrada do Corinthians em campo, o momento marcado para desfraldar a faixa.

A faixa pedindo anistia foi levada ao ar pelas emissoras que transmitiram o jogo e, no dia seguinte, estava nas primeiras páginas de todos os principais jornais do país. O dia só não foi perfeito para o Carlos Mac Dowell, que foi preso – mas solto logo em seguida – na saída do estádio. E para completar seus infortúnios, o Corinthians ganhou o jogo – se não me engano, por 2 a 0. O Mac Dowell é santista.

*Antônio Carlos Fon, jornalista, familiar de preso político; participante do CBA-SP.

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