Julho de 1973, Rio de Janeiro. Eu era estudante de Ciências Sociais na USP. Estávamos dando os primeiros passos na reorganização do movimento estudantil, desarticulado após 1968. Estava no Rio com um amigo e companheiro de luta estudantil. Uma noite fomos ao encontro de um outro companheiro, que estava na clandestinidade. Com as precauções de costume, saímos andando pelas ruas do Rio, conversando sobre várias coisas: a situação política, as últimas prisões e desaparecimentos, o que fazer frente a tudo isso. Ele era baixinho, barbudo, e muito simpático. Eu não podia perguntar nem dizer nada (eram as regras da época), mas tinha quase certeza de que se tratava de Honestino Monteiro Guimarães, último presidente da UNE, perseguidíssimo pela repressão. Ele nos contou que havia acabado de escrever um "Mandato de Segurança Popular", um documento onde denunciava as repetidas ameaças de morte que vinha sofrendo, e que tinha a intenção de enviar para as autoridades políticas e militares, parlamentares e outros personagens proeminentes do país, em uma tentativa de defender a sua vida, que ele sabia estar em risco, e de denunciar antecipadamente qualquer versão fabricada sobre uma possível prisão ou desaparecimento.

Mas não falamos só de política. Terminamos a caminhada no Aterro do Flamengo, numa bela noite de lua cheia, nos sentamos no chão perto do Monumento aos Pracinhas e conversamos sobre muitas outras coisas. Nos meus 19 anos, impressionou-me muito ouvi-lo falar das saudades que tinha da filha pequena, e da sua impossibilidade de vê-la devido à perseguição da qual era vítima. Poucos meses depois recebemos a notícia do desaparecimento de Honestino. E não sei quanto tempo depois (quando me atrevi a perguntar ou quando alguém se atreveu a me contar) tive a confirmação de que era ele mesmo o nosso companheiro de caminhada naquela noite.

Por isso, quando ouvi pela primeira vez o Gil cantando "Não chore mais", levei um susto. Tinha a sensação de que ele estava falando de nós, daquela caminhada, daquela noite: "bem que eu me lembro, a gente sentado aqui, na grama do Aterro, sob o céu…. ob-observando estrelas, junto à fogueirinha de papel… amigos presos, amigos sumidos assim…pra nunca mais………". E até hoje, sempre que ouço essa música lembro daquela noite, e do Honestino.

E talvez tenha sido por isso também que, mais de 5 anos depois, em novembro de 1978, no I Congresso Brasileiro pela Anistia, eu tenha decidido participar da "Comissão dos Familiares de Mortos e Desaparecidos". Eu continuava na Ciências Sociais (finzinho de curso) e tinha sido diretora do DCE-Livre da USP "Alexandre Vannuchi Leme". Havíamos vivido muitas coisas naqueles anos: as primeiras articulações em defesa dos Direitos Humanos, os dois grandes atos religiosos da Catedral da Sé, em protesto contra os asssassinatos de Alexandre Vannuchi Leme (1973) e Vladimir Herzog (1975), o lento proceso de reorganização do movimento estudantil, que havia explodido nas ruas das principais cidades do país em 1977 e o reaparecimento na cena pública do movimento operário, a partir das greves de maio de 1978. O Movimento pela Anistia (ampla, geral e irrestrita, e com punição aos torturadores, como reivindicávamos) era uma continuidade de todo esse processo e tinha o grande mérito de criar um espaço de articulação e encontro de todos os setores que vinham se destacando na luta contra a ditadura. O Congresso pela Anistia foi um momento de consolidar, avançar e socializar todo o esforço desenvolvido pelo CBA durante tantos meses, e que, por sua vez, estava baseado na luta que vinha de muito antes, articulada pelos familiares e amigos das vítimas da repressão, com apoio de seus advogados.

A Comissão que iria tratar da questão dos mortos e desaparecidos estava composta, na sua maioria, por esses familiares. Alguns deles já se conheciam e haviam compartilhado, em momentos anteriores, buscas, esperanças, pistas, desilusões, frustrações, impotência. Mas naquele encontro havia mais gente, e quando cada um deles começou a contar a sua história, foi como se, coletivamente, começassemos a montar um imenso quebra-cabeças. Foi como se, de repente, atráves dos fragmentos de informação que se entrelaçavam, das memórias e lembranças de cada um, naquele momento compartilhadas, começassem a aparecer outra vez ante nós aqueles companheiros e companheiras. Foi como se, de alguma forma, conseguíssemos com isso resgatá-los do silêncio, da escuridão e do esquecimento aos quais haviam sido condenados pela violência repressiva da ditadura militar.

Voltando à música do Gil: a única coisa com a qual eu não consigo me identificar é quando ele diz: "…as recordações, retratos do mal em si, melhor é deixar prá trás". Entre outras coisas, o movimento pela Anistia foi justamente isso: uma recusa a deixar prá trás, uma recusa ao esquecimento. Uma tentativa de refazer, coletivamente, publicamente, as versões da história. Se alguma vez esse foi o sentido da palavra anistia (esquecimento, perdão), esse sentido foi transformado pelo nosso movimento coletivo, que deixou a sua marca na luta pela redemocratização do Brasil.

 

*Laís Wendel Abramo é socióloga; foi líder estudantil, diretora do DCE Livre da USP, participante da campanha do CBA/SP. Atualmente trabalha na Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Chile.

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