Este depoimento sobre os acontecimentos referentes à luta pela Anistia, Ampla, Geral e Irrestrita foi baseado em trechos por mim selecionados do livro de minha autoria "Vida e Arte – Memórias de Lélia Abramo.

Embora eu não estivesse presente e só soubesse do ocorrido através do noticiário de jornais e de vários relatos, um dos acontecimentos mais chocantes de 1977 foi a invasão do campus da PUC, na noite de 22 de setembro, comandada pelo então Secretário da Segurança, Coronel Erasmo Dias. Nessa noite os estudantes comemoravam, em frente ao prédio da PUC, a realização do III Encontro Nacional dos Estudantes que havia sido feito na manhã daquele dia, apesar da proibição policial. A violência policial que, além dos habituais espancamentos, resultou na invasão das dependências da escola, vasculhadas e depredadas, culminou quando muitas bombas foram jogadas contra os estudantes, provocando queimaduras em vários deles, especialmente em quatro jovens, Íria Visona, Graziela Augusto Eugênio, Maria Cristina Raduan e Virgínia Maria Finzotto, que sofrem até hoje as conseqüências de tamanha brutalidade. Essas bombas foram chamadas ironicamente pela polícia de "bombas de efeito moral". Além disso, centenas de estudantes foram presos e levados em camburão para o quartel Tobias de Aguiar. Soltos no decorrer da noite e dia seguinte, verificou-se que nenhum dos líderes estudantis mais conhecidos estava entre os detidos.

A revolta causada por esse episódio contribuiu para intensificar a luta pela anistia. A parte mais progressista da Igreja Católica estava presente através de organizações como a Comissão Justiça e Paz e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que lutavam pelos direitos humanos, mas estava também na base de muitos outros movimentos populares como o Movimento contra a Carestia e o da Panela Vazia e o Movimento de Saúde da Zona Leste, cujos membros, especialmente na periferia, iam de porta em porta, procurando conscientizar a população para lutar por melhorias nas condições de vida e contra a repressão.

O senador Teotônio Vilela, deu continuidade às suas viagens pelo Brasil, fazendo o levantamento das torturas e das arbitrariedades cometidas pela repressão e veio para São Paulo investigar o ocorrido e a situação das jovens queimadas.

Ao mesmo tempo em que os movimentos pela anistia se organizavam e evoluíam, explodiam as greves dos metalúrgicos do ABC, que lutavam basicamente por melhorias salariais. Meu interesse foi despertado pela força com que esse movimento surgiu. Tratava-se de uma categoria de trabalhadores da indústria que, sendo melhor remunerada, tinha um nível de vida um pouco mais alto que outras categorias, o que lhes facultava maior consciência sobre as questões de direito trabalhista e direitos humanos. Os trabalhadores promoviam greves que não eram somente impulsionadas pela luta reivindicatória de ordem salarial. O que me parece, embora não o pudesse confirmar, é que o impulso dos grevistas continha uma consciência política de classe.

Embora não houvesse de início muita coesão entre os vários movimentos, foi se desenvolvendo uma irresistível convergência em direção ao mesmo objetivo.

Na atmosfera pesada em que vivíamos nesse final de década, o movimento pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita e as greves do ABC (Grande São Paulo) provocavam grande impacto e eram ao mesmo tempo exemplos estimulantes contra a opressão de que éramos vítimas.

O povo já se manifestava pela anistia a nível nacional, pressionando o governo militar.

No dia sete de setembro de 1978, deu-se o encontro dos Movimentos pela Anistia, em Salvador, Bahia, no qual eu estava presente, tendo assinado a Carta então elaborada.

Pouco depois, de 2 a 5 de novembro, realizou-se o Primeiro Congresso pela Anistia, do qual participei.

Na abertura do Congresso estavam, compondo a mesa, representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, da Associação Brasileira de Imprensa, da Comissão Justiça e Paz, da Comissão Pró-União Nacional dos Estudantes, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, do Instituto dos Arquitetos do Brasil, da Oposição Sindical dos Metalúrgicos de São Paulo, além de um familiar de preso político de Pernambuco e de um familiar de preso político desaparecido e do deputado cassado Lysâneas Maciel, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) que, pela legislação eleitoral em vigor naquele momento, representava o papel de partido de oposição.

Estavam presentes também vários representantes de organismos internacionais que davam apoio ao movimento, como o Tribunal Bertrand Russell (que havia julgado os crimes de guerra do Vietnã), a Comissão Internacional de Juristas Católicos, o Comitê de Solidariedade França-Brasil além de entidades semelhantes da Suíça e ainda membros do Parlamento Italiano. Muitas outras entidades internacionais enviaram propostas, teses e moções de apoio à luta pela defesa dos direitos humanos. O movimento adquiria uma grande força.

Um dos presentes era o deputado italiano Lélio Basso, que logo fiquei conhecendo; além da coincidência de termos o mesmo nome eu fui convidada a fazer a tradução simultânea do seu discurso na cerimônia de encerramento do Congresso. Naquele dia os aparelhos de som não funcionaram e era necessário traduzir à viva voz os discursos dos representantes estrangeiros. Nessa ocasião, eu, como todos os presentes assinamos o Manifesto da Anistia.

O movimento pela anistia foi se ampliando e envolvendo um número cada vez maior de pessoas e de categorias sociais que passaram a atuar cada vez mais e de forma organizada.

Era o período em que eu trabalhava pela regulamentação de nossa categoria além de estar participando de gravações de casos especiais na TV Cultura. Nos rápidos intervalos entre uma viagem e outra conseguia participar também do movimento pela anistia.

Lembro-me que organizamos, nós atores, uma tática bastante audaciosa, não somente em São Paulo, mas também no Rio e em Salvador: tratava-se de visitar os presídios em que estavam presos políticos. Eu, como presidente do SATED (Sindicato de Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversão), convidava as mais conhecidas dentre as atrizes de televisão para essas visitas. Formávamos pequenos grupos, o suficiente para lotar o Fusca de um deputado cassado: Mário Covas. A sua participação, compreensão e solidariedade foi de imensa importância, apesar de ele estar, pessoalmente, impedido, por sua condição de cassado, de ingressar nos presídios. Covas – posteriormente prefeito e governador de São Paulo – ficava pacientemente esperando nas imediações. Ele também nos cedia o seu escritório para rápidas reuniões quando decidíamos quem convocar para as visitas.

Certo dia, fomos ao Presídio Barro Branco, com um grupo do qual fazia parte Bruna Lombardi que, maravilhosa como sempre, muito à vontade, adentrou aquele lugar horrível. Ao chegarmos ao pátio houve um grande alvoroço: muitos soldados que estavam de guarda, vigiando dos altos muros que cercavam o edifício, curiosos e deslumbrados com a visão da bela criatura, aglomeraram-se num canto da muralha, de onde podiam avistar a diva. Tivéssemos previsto essa reação por parte dos vigilantes, poderíamos ter aproveitado para antecipar a anistia dos presos políticos que ali se encontravam detidos. Não foi sem receio que constatei tal situação.

Dias depois, eu recebi ordem de um Quartel Militar, da Capital, cuja identificação agora me foge, proibindo-me a entrada nos presídios em que houvesse presos políticos. Jamais imaginei ocasionar tal preocupação. Lembro-me de que houve, na Câmara Municipal, uma reunião em que me foi comunicado tal absurdo e a única voz que se levantou contra o fato foi a de Perseu Abramo.

Tais acontecimentos, comuns naqueles tempos, não nos impediam de continuar a protestar contra a opressão através de outras formas. Decorridos 15 anos de ditadura, todos ansiavam pelo regresso dos exilados e pela libertação dos presos políticos. O movimento cresceu tanto, com a participação de vastas camadas da população, e exerceu tamanha pressão que, a 28 de agosto de 1979, foi promulgada a lei de Anistia, apesar de não corresponder às nossas expectativas pelas quais tanto havíamos lutado: ampla, geral e irrestrita.

O regresso dos exilados foi motivo de concorridas recepções nos aeroportos. A cada desembarque – e eles chegavam um ou dois de cada vez – não faltavam discursos e flores, risos e lágrimas de alegria. Houve também muitas lágrimas de tristeza por todos os sofrimentos passados e por todas as pessoas que não haviam tido condições de sair do país e que aqui mesmo foram mortas pela repressão ou rotuladas como "desaparecidas". Além disso deveríamos continuar a luta pela libertação de alguns brasileiros que se encontravam presos em outros países da América Latina, como Flávia Schilling, na época, ainda detida no Uruguai.

São Paulo, 8 de agosto de 1999

 

*Lélia Abramo, atriz. Ex-presidente do Sindicato dos Artistas, participou do movimento dos artistas pela Anistia.

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