Quando o Congresso da ditadura fardada aprovou a Lei da Anistia, em agosto de 1979, eu dirigia a revista Isto é, que a criticou duramente. Os sonhadores de uma democracia contemporânea do mundo clamavam por anistia ampla, geral e irrestrita, para pacificar a nação e virar de vez uma página amarga; saiu-se o regime com um ato imperfeito, que não escondia seu autoritarismo e semeava a inquietação. Ou seja, atingia objetivo oposto àquele que teria de visar.

De todo modo, o tempo galopou. Houve o arranjo pós-campanha das Diretas Já, conforme as vetustas regras da conciliação das elites. Tancredo morreu antes de assumir e Sarney regeu a chamada transição. A partir de 1989, uma prática eleitoral democrática se estabeleceu em todos os níveis.

Agora, vinte anos passados, releio a Isto é da época e experimento um arrepio entre o fígado e a alma ao perceber o quanto me iludia então, e quantos se iludiam, indignados com a lei recém aprovada, mas ainda resistentes na barricada, esperando pelo raiar do sol da liberdade e da igualdade.

Me pergunto: quem ali tinha fé bastante para todo o sempre? Peguem os figurões hodiernos, peguem os comportamentos da sociedade afluente e influente, peguem os envolvimentos da mídia com o poder. Peguem o que quiserem, entre o neoliberalismo governista e a sujeição à vontade da metrópole (capital: Washington); entre os índices cada vez mais negativos de pobreza e má distribuição de renda e a resignação do povo sem líderes (com exceção do MST); entre a laborfobia de FHC e a arrogância de ACM. Etc. etc. Este Brasil é uma espécie de burla da qual a Lei da Anistia de vinte anos atrás era a própria profecia. A metáfora pronta e acabada antes do acontecimento.

Houve quem não compreendesse, em estado de santa ingenuidade, que se completava naquele momento o acerto decisivo deste futuro hoje presente.

Se esboçava a salada infame na qual se misturam todos os detentores e aspirantes do poder, sem distinção de credo, até porque não o têm. Quem perseguiu e quem foi perseguido.

Sei que ainda sobram alguns sonhadores. Não perderam a fé – ou, pelo menos, não encostaram as idéias que os inspiravam muitos anos atrás.

Não precisam declinar a entrega a uma realpolitik de marca tipicamente tropical para justificar, e até enaltecer, a rendição. Poupam-se de recomendar o esquecimento do que já disseram. Trata-se, porém, de turma exígua. Quem manda são os outros, pacificados a despeito da lei que nasceu impura e nem por isso deixou de ser representativa dos humores e dos interesses das elites. Pois é, este é um país para poucos e quem bolou a anistia à brasileira sabia o que fazia.

 

*Mino Carta é jornalista.

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