Duas décadas atrás, recém-egresso da Faculdade de Medicina, entrei para o movimento de anistia, onde, junto a outros profissionais de saúde, organizamos o Núcleo de Profissionais de Saúde do CBA/SP.

Duas décadas atrás, recém-egresso da Faculdade de Medicina, entrei para o movimento de anistia, onde, junto a outros profissionais de saúde, organizamos o Núcleo de Profissionais de Saúde do CBA/SP.

Era um passo natural. Havia participado do movimento estudantil pelas liberdades democráticas e pela reorganização das entidades representativas, sendo o DCE Alexandre Vannuchi Leme um exemplo eloqüente. Exigir liberdade e democratização implicava a exigência de anistia aos que haviam lutado, antes de nós, contra a ditadura e pela implantação de um estado democrático no Brasil. Presos estavam, porque haviam se disposto a gritar contra as barbaridades dos déspotas de então e a favor dos direitos dos cidadãos comuns. Eram prisioneiros políticos, uma maneira infame de tentar restringir a consciência.

Engajei-me na luta com todo o vigor. Minha formação cristã levava-me a lutar pela Justiça. Solidariamente, engajei-me. Logo percebi que havia uma contribuição particular específica: a luta contra a tortura, um crime hediondo. E mais: a luta contra a participação direta ou indireta de qualquer profissional de saúde na sua prática. Quase ingenuidade, não conseguia entender como alguém, que escolhera uma profissão voltada para o resguardo da vida e a minoração do sofrimento, fosse capaz de ser o agente causador de danos e seqüelas, muitas vezes resultando em morte. Mas a triste realidade impunha-se a nós: essas pessoas existiam, médicos principalmente, profissionais que colocavam seu conhecimento à serviço da repressão, alguns torturando de fato, ou autorizando a tortura, outros recuperando a vítima torturada, vários tentando ocultar os resultados fatais através de atestados de óbito falsos, muitos se omitindo. Havia que expurgá-los. A luta contra a tortura passava pela denúncia e pela exigência de punição desses maus profissionais.

Tínhamos medo. Medo de também sermos vítimas, por estarmos denunciando. Medo de nos "fazerem desaparecer". Mas, juntos, enchíamo-nos de coragem. Valeu a pena! Muitos processos desencadeados contra tais práticas tiveram ou estão tendo seu desfecho agora. A sociedade já rejeita veementemente a participação de médicos e outros profissionais de saúde em atos de tortura.

Hoje, vinte anos depois, posso afirmar que a experiência do Núcleo e do movimento de anistia foi importantíssima para a minha vida, para a boa formação do meu caráter, para o meu aprendizado de solidariedade humana, para o meu bom desempenho profissional. Trabalho atualmente junto à população idosa, com o objetivo de ajudar a garantir bem-estar e boa qualidade de vida, uma velhice saudável para todos. A luta pela anistia e, especialmente a luta contra a tortura e contra todo tipo de atendimento cruel e desumano, forjou-me profissionalmente. Abriu-me os olhos para a existência dessa prática tão freqüente em muitas delegacias, há muito tempo, contra seres humanos, os presos comuns.

Portanto, é preciso gritar com toda a força dos pulmões, força que vem lá do fundo da alma:

TORTURA, NUNCA MAIS! PUNIÇÃO A TODOS OS TORTURADORES! VIVA A VIDA!

 

*Sérgio Márcio Pacheco Pascoal é médico, participante do grupo de profissionais de Saúde do CBA/SP.

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