Movimento 28/04 a 04/05/80

 

Os cárceres políticos brasileiros encheram-se e novamente de presos no início da semana passada. Em São Paulo, já no sábado eram presos Lula e numerosas outras pessoas, entre sindicalistas, dois advogados e um jornalista. Até o momento de encerrarmos este artigo, haviam sido liberadas seis pessoas, mas novas prisões foram efetuadas nos dias seguintes. Em Minas, no final da semana passada foram presas cerca de 150 pessoas em turnos, posteriormente liberadas. E, no Ceará, continua preso José Sales.

Não foram apenas as prisões. Na semana retrasada, decretada a intervenção no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, desencadeou-se brutal repressão contra numerosos operários, que não aceitaram passivamente a presença da PM na sua entidade e na sua cidade. Na ocasião, houve vários feridos, alguns graves. E, durante toda semana, uma vigilância policial ostensiva e excessiva, cercando casas de sindicalistas, invadindo outras, espionando os transeuntes nas praças de São Bernardo e Santo André.

Tudo isso significa a confirmação de uma mudança de tendência na repressão, iniciada no final de 1968: a Ditadura, tendo considerado que já desbaratara a esquerda organizada, passa agora a voltar sua força contra os movimentos econômicos e sociais, notadamente as greves.

Essa mudança de direção na ação repressiva da Ditadura constitui uma resposta a uma mudança equivalente ocorrida nas forças oposicionistas, mais ou menos na mesma época: a luta unificada da sociedade civil contra os abusos da repressão (luta que se traduz por palavras de ordem tipo “liberdades democráticas” e “Estado de Direito”) começa a apresentar, em seu interior, um traço distinto e diferenciador — a luta de classes — expressa, inicialmente, pela greve dos metalúrgicos do ABC em maio de 78 e depois, disseminada por numerosas campanhas reinvindicatórias em todo o País. A anistia parcial e a reformulação partidária limitada — duas outras respostas da Ditadura para enfrentar a nova conjuntura — contemplam, em parte, os anseios oposicionistas (tanto liberais quanto esquerdistas) por liberdades políticas, mas não resolvem, sequer parceladamente, as novas demandas expressas nas greves.

Tudo isso também confirma o acerto das previsões de modificação da conjuntura repressiva, feitas pelos movimentos de anistia em reuniões e encontros parciais a partir dos meados do ano passado, e finalmente consubstanciadas em teses e resoluções aprovadas no II Congresso Nacional de Anistia realizado em novembro, em Salvador. Nessa ocasião, os Comitês Brasileiros de Anistia, os Movimentos Femininos pela Anistia e as Sociedades de Defesa dos Direitos Humanos de todo o País não só constataram essas mudanças, como também firmaram sua nova linha política: libertação de todos os presos, volta de todos os exilados, reintregação de todos os afastados, recuperação da memória das vítimas, fim do aparato repressor, revogação da Lei de Segurança Nacional, e (aqui o elemento novo) apoio às lutas dos setores populares e dos trabalhadores contra a repressão.

Reviver essas bandeiras, agora, não só é oportuno, como fundamental. Depois do II Congresso, houve um inegável e progressivo esvaziamento do movimento de anistia e das entidades que o compõem, em parte gerado pelo fato concreto de que, paulatinamente, quase todos os presos foram saindo da cadeia, ora anistiados, ora em liberdade condicional, e de que praticamente voltaram ao Brasil quase todos os que se encontravam fora, sob diversas circunstâncias (a mais recente foi Flávia Schilling). Mas continua intacta a repressão da Ditadura, embora esta tenha modificado seu estilo e aquela tenha redirecionado suas ações.

E a repressão reaparece de forma sagaz e brutal, incorporando e combinando formas antigas e novas. Nos últimos acontecimentos ligados à greve dos metalúrgicos do ABC, por exemplo, percebe-se claramente a justaposição de duas políticas: a uma orientação geral, de ordem federal, para reprimir, adicionaram-se, na sua execução, peculiariedades regionais paulistas.

A prisão de Lula e dos demais dirigentes sindicais de São Bernardo e Santo André certamente se explica pelo blandicioso direitismo do poder central da Ditadura (Golbery, Delfim, Macedo), dedicado à causa de servir as multinacionais; mas a de José Carlos Dias e Dalmo Dalari, da Pontifícia Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, só se compreende pelo anticomunismo fascista, desabrido, feroz e pouco inteligente do poder ditatorial local (Maluf, Tavares etc.), obcecado em sufocar qualquer reação popular ampla e democrática. Nesse último contexto também se explicam o cerco à residência de Luiz Eduardo Greenhalgh, advogado de presos políticos, membro da Comissão de Direitos Humanos da Arquidiocese e um dos mais destacados líderes dos movimentos de anistia do Brasil, e, ainda, a invasão da casa de Salvador Pires, presidente da Frente Nacional do Trabalho, o cerco policial à casa de David de Morais, presidente do Sindicato dos Jornalistas, e a prisão de outras pessoas.

As formas de captura dos que foram presos também evidenciam dois estilos, duas orientações diferentes, embora não opostas ou antagônicas, sequer divergentes: alguns dos presos no final da semana retrasada em São Paulo foram capturados de forma pouco violenta, dando-se-lhe, até, em certos casos, a oportunidade de terminar o café e de se vestirem; outros foram praticamente seqüestrados, arrancados de casa em pijamas, ou cercados por carros e policiais fortemente armados, algemados, jogados na bagageira das C-14, ocultos sob um cobertor até a chegada ao DEOPS, recebendo ameaças das mais variadas; este último estilo lembra a fanigerada Oban, precursora do Doi-Codi do II Exército. Enfim, a repressão da “abertura” mostrou a sua face.

Ora, a libertação de Lula e dos demais presos, sindicalistas ou não — tarefa prioritária das oposições — jamais será conseguida se houver um fragoroso recuo dos metalúrgicos, sintetizado por uma negociação espúria de fim incondicional da greve, barganhada por comissões mediadoras indevidas e sem terem recebido expressa delegação para tal.

Ao contrário, somente a força e a firmeza dos metalúrgicos em greve poderá fazer reverter a situação a seu favor. Quer essa firmeza se concretize em prolongar a greve, quer se consubstancie em conduzir a greve de forma a conseguir negociações que lhes sejam favoráveis, são os metalúrgicos, somente, os que têm em suas mãos a faculdade de obter a libertação de Lula e dos demais sindicalistas, e não devem nem abrir mão desse poder nem delegá-lo seja aos seus inimigos — os patrões e o Estado — seja a falsos aliados, mais preocupados em preservar a própria pele ou o próprio status do que em defender os interesses reais da classe operária.

A firmeza dos metalúrgicos depende prioritariamente deles mesmos, mas depende, embora secundariamente mas não irrelevantemente, da solidariedade dos demais trabalhadores e de todas as foças efetivamente democráticas e oposicionistas.

E é aí que podem e devem ressurgir, de forma oportuníssima e inadiável, as teses do II Congresso de Anistia: a imediata e total incorporação de todas as entidades de anistia ao trabalho de organização dessa solidariedade.

Em São Paulo e em outros locais isso já está se dando, mas é preciso que o movimento de solidariedade se alastre e intensifique. Ora reunindo-se a outros movimentos democráticos e a parlamentares de partidos de oposição, ora tomando a iniciativa nos locais e, nos casos em que a oposição é mais fraca, os Comitês Brasileiros de Anistia têm, agora, uma clara e urgente tarefa.

A solidariedade é um sentimento difuso, e, no caso presente, ela existe de forma evidente, entre as classes trabalhadoras, os setores populares, e entre as camadas mais proletarizadas das classes médias. A tarefa prioritária dos CBAs, em conjunto com outras entidades democráticas, é a de organizar essa solidariedade, ou seja, de transformá-la em apoio efetivo, que se dá em dois planos, o material e o político.

O primeiro se traduz em auxílio financeiro e em espécie, em assistência jurídica e médica a presos e vítimas da repressão policial, em divulgação e propaganda tanto dos fatos quanto das reivindicações dos grevistas. O segundo exprime-se pela organização ou pela participação em manifestações populares de pressão contra as autoridades, que vão desde a emissão de notas e manifestos até os comícios, atos públicos, passeatas, e, nos casos em que isso for possível, greves de apoio, mesmo que simbólicas e parciais.

Com a autoridade moral e política que já adquiriram no recentíssimo passado de lutas, e com a capacidade de trabalho e organização de que já deram cabais demonstrações, os CBAs, os MFPAs e as SD-DHs têm, novamente, a sua oportunidade de provar a atualidade e a permanência da palavra de ordem de anistia ampla, geral e irrestrita.

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