Por Zilah Wendel Abramo

Por Zilah Wendel Abramo

De um modo geral, podemos afirmar que foram vítimas da repressão todos os que se sentiram aviltados e cerceados nos seus legítimos direitos, pelas leis de exceção impostas ao povo brasileiro pela Ditadura que se instalou no País a partir de 1964. Por meio dos sucessivos atos institucionais o Governo se arrogou poderes para suspender direitos políticos e cassar mandatos legislativos; para, mediante investigação sumária, demitir ou aposentar os que "houvessem atentado contra a Segurança do País, o regime democrático e a probidade administrativa, excluída a apreciação judicial.". Assim, extinguiu os partidos políticos, substituindo-os pela farsa do bi-partidarismo, tirou do povo o direito de votar para Presidente da República e para governadores dos Estados, suspendeu o habeas corpus, autorizou o julgamento em tribunais militares dos "crimes políticos"; instituiu a pena de morte para "subversivos".

Com as arbitrariedades incluídas nessa legislação o povo brasileiro foi privado da liberdade de expressão, manifestação e reunião, submetido a regras inaceitáveis como a exigência dos atestados ideológicos, e à existência de uma censura feroz, que proibia ou mutilava peças de teatro e de televisão, músicas, artigos de jornais e revistas, limitado no seu direito de ir e vir. Ninguém estava livre de ser preso ou detido por qualquer motivo, ou de ter sua casa vasculhada, em busca de "material subversivo".

Esse estado de coisas, que afetou todos os opositores do regime, criou os vários tipos de "atingidos" diretamente, que foram o alvo permanente de toda a campanha pela anistia:

Presos politicos: Nunca foi possível contabilizar com exatidão o número de prisões de opositores políticos, porque um grande número delas não eram notificadas ao Judiciário ou mesmo aos superiores hierárquicos dos agentes da repressão, e muitas sequer resultaram em processo regular. Mas certamente os presos políticos que povoaram os presídios nessa época contavam-se por milhares e as condenações de alguns superavam os cem anos de reclusão. As prisões, além de arbitrárias, figuravam verdadeiros seqüestros; casas invadidas durante a noite, depredações, ameaças aos familiares; violências desnecessárias (dada a superioridade numérica dos agentes da repressão) durante a prisão e condução do preso. Muitas vezes, não encontrando a pessoa procurada, eram "detidos" os familiares que estivessem presentes: esposas, filhos menores, irmãos, pais ou mães dos "subversivos".

As condições carcerárias eram terríveis: além das torturas, o preso muitas vezes era privado de alimentação e de água ou as recebia de forma irregular; os agentes da repressão escamoteavam todas as informações sobre os presos e procuravam amedrontar os familiares que iam buscá-las; além das torturas diretamente sofridas pela vítima, ela também sofria torturas indiretas, sendo obrigada a presenciar outros presos sendo torturados, ou a ouvir os gritos dos que estavam sofrendo tortura; eram freqüentes, também, as ameaças de morte e os fuzilamentos simulados.

As arbitrariedades e violências sofridas no cárcere por esses presos levaram-nos a inúmeras greves de fome, em todos os presídios do País.

Mortos e desaparecidos: Os assassinatos dos opositores do regime nunca foram reconhecidos pelas autoridades; escamoteando a verdade, eram plantadas notícias em jornais falando de "mortos em tiroteio" dos que teriam resistido à prisão (o caso mais famoso foi o de Carlos Marighella); "atropelados por caminhões", ao tentarem evadir-se", subterfúgios esses que encobriam os fuzilamentos sumários. No caso dos mortos sob tortura nas prisões, ou era preparada a versão de "atropelamento" ou se falava de "morte natural" ou de "suicídio". Essas versões eram sustentadas por laudos médicos falsificados. O primeiro caso de "suicídio" desmascarado publicamente foi o do jornalista Vladimir Herzog, seguido logo depois pelo do operário Manoel Fiel Filho. Num enorme número de casos, o recurso usado era o não registro da morte e da ocultação do cadáver, enterrado clandestinamente sob nome falso ou atirado ao mar. Com isso surgiu a figura dos desaparecidos, para desespero dos familiares e amigos que, durante anos e anos, procuraram notícias dos filhos, maridos, irmãos, companheiros de luta, para no final terem certeza de que eles haviam sido assassinados.

Exilados, Banidos e Clandestinos: Muitos dos opositores políticos, nos primeiros dias após o golpe de 64, sentindo-se ameaçados, exilaram-se nas embaixadas e foram para o exterior. Esse exílio "voluntário" foi sucedido pelo caso dos banidos, aqueles que tiveram os direitos políticos cassados e perderam a cidadania brasileira. É o caso dos prisioneiros que foram libertados e expulsos do País, em troca da liberação dos embaixadores e cônsul seqüestrados pelos revolucionários. Mais tarde, o contingente de exilados foi engrossado por novos parlamentares cassados, professores, pesquisadores e outros profissionais, cassados e demitidos, e pelos ex-presos políticos que, não encontrando condições de sobreviver no país, foram forçados a optar pelo exílio. Finalmente, clandestinos foram aqueles que, ameaçados de prisão ou de morte, e não querendo ou não podendo deixar o país, esconderam-se sob disfarces, documentos e nomes falsos, e permaneceram no Brasil, correndo todos os riscos. Muitos deles, descobertos pelos agentes da repressão, foram assassinados sumariamente.

Cassados, aposentados, demitidos de cargos públicos. Logo após o golpe, um grande número de parlamentares e outros políticos proeminentes, considerados como adversários do regime, tiveram seus mandatos cassados e direitos políticos suspensos. Nesse rol foram incluídos, num segundo momento, até mesmo alguns dos participantes do Golpe de 64, como Carlos Lacerda e Adhemar de Barros. Além desses, o ex-presidente Juscelino Kubitscheck. Sucedeu-se a isso um violento expurgo no quadro de servidores públicos, atingindo especialmente as universidades, que tiveram alguns dos seus mais eminentes professores aposentados precocemente ou demitidos. Com esse expurgo, as universidades públicas perderam professores, cientistas, pesquisadores, do porte de Mario Schenberg, Oscar Niemeyer, Florestan Fernandes, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Fernando Henrique Cardoso, João Vilanova Artigas

Esse quadro mostra o alijamento arbitrário da vida nacional de inúmeros brasileiros que, dentro ou fora do Brasil, tiveram, durante anos, cerceada a possibilidade de contribuir positivamente para o progresso do país. O prejuízo só não foi maior porque, teimosamente, muitas pessoas reagiam: jornalistas corajosos construíam, com a imprensa alternativa e mesmo procurando brechas na imprensa diária, uma possibilidade de informar o povo, apesar da censura feroz; artistas de teatro, músicos e literatos conseguiam, de cada centena de obras censuradas, salvar algumas dezenas; os presos, do fundo dos cárceres, retomavam as discussões políticas, mandavam para fora suas declarações e denúncias, escreviam seus poemas, desenhavam sua revolta nas peças de arte gráfica que conseguiam atravessar as muralhas dos presídios. E os exilados engrossavam os comitês de anistia que se formavam no exterior e divulgavam informações sobre a situação do Brasil pelos quatro cantos do mundo. Tudo isso acontecia enquanto os familiares de presos, mortos ou desaparecidos, incansáveis, faziam suas denúncias e exigiam justiça, apoiados pelas Igrejas progressistas, por uma categoria admirável de advogados que enfrentou todos os perigos e desconfortos para assumir a defesa das vítimas da repressão e, pouco a pouco, pelas entidades da sociedade civil que se mobilizavam contra o autoritarismo. De todo esse tecido foi feita a Campanha pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita.

`