1927- 1999
jaime

Enterrado sem as lágrimas suspeitas e a hipocrisia fúnebre que se costuma oferecer a personalidades silenciadas em vida, o reverendo Jaime Wright deixou a lição de uma existência à altura de seu tempo. O reverendo foi cidadão de uma história difícil, de um país assombroso onde as baionetas estavam no governo, a imprensa vivia sob censura e a tortura gemia nas prisões. Se hoje é possível reunir filhos e netos para falar desses tempos, é porque existiram homens e mulheres, no Brasil, com a coragem e a determinação para mudar aquele estado de coisas. Jaime Wright foi uma dessas pessoas.

Assassinado em 1973, quando a cúpula da ditadura militar decidiu exterminar o comando das organizações armadas, o deputado Paulo Wright, irmão do reverendo, morreu aos 40 anos de idade. Carregando o remorso e a culpa que sempre corroem os familiares nessas horas, Jaime Wright era um religioso com discreta atividade política quando começou a procurar pelo irmão, agindo como se não pudesse acreditar em sua morte. Aproximando-se de familiares de presos políticos que se movimentavam em torno da Cúria Metropolitana, participou do boletim Clamor, que defendeu perseguidos políticos do Uruguai, da Argentina e do Chile. Mais tarde, teve um papel decisivo na visita de Jimmy Carter ao Brasil, quando Dom Paulo Evaristo Arns desafiou o governo militar ao se encontrar com o presidente dos Estados Unidos, a quem entregou uma lista de desaparecidos políticos. Wright abriu as portas para esse encontro ao mobilizar seus contatos nos Estados Unidos, que tinham acesso à Casa Branca.

Após a Anistia, Luiz Eduardo Greenhalgh foi encarregado por Dom Paulo de montar as equipes de trabalho, pesquisa e redação do projeto Brasil Nunca Mais. O projeto custou 500 000 dólares e foi Wright quem levantou o dinheiro junto ao Conselho Mundial de Igrejas. Ele entrou no Brasil Nunca Mais como tesoureiro mas aos poucos foi assumindo outras tarefas e responsabilidades. Supervisionou a microfilmagem dos documentos retirados dos arquivos militares e assumiu o risco de viajar diversas vezes para a Suíça para depositar os rolos de filme em local seguro. Prestava contas dos trabalhos e trazia o dinheiro escondido na roupa. Nos últimos dias, varou madrugadas fazendo revisão e conferindo dados, datilografando textos e animando a equipe de trabalho.

A anistia de 1979 abriu as portas das prisões mas foi tramada para perdoar os torturadores, impedindo que seus crimes fossem investigados e punidos. O que se imaginava era que, com o tempo, tudo acabaria esquecido. Depois de Brasil Nunca Mais, isso deixou de ser possível. A tortura passou a ter nome, endereço, vítima e responsável. Os carrascos do regime mantiveram seus postos, seguiram suas carreiras, mas foram condenados ao inferno moral. Quando são reconhecidos e identificados, deixam de sair à rua, mudam de bairro e de cidade. Não falam sobre o passado, mentem para os filhos.

Pouco a pouco, a equipe do Brasil Nunca Mais se dispersou. Dom Paulo voltou a seus afazeres, Luís Eduardo assumiu a carreira política. Jaime Wright tornou-se guardião do projeto, que consultava com gosto e perícia. Sentado ao lado do telefone, em Vitória, onde residiu ao longo dos últimos dez anos, cumpria um ritual que era sempre o mesmo. Nomeava-se um suspeito para um cargo de relevo na administração, Wright ia até o computador, examinava os dados referentes à pessoa e retornava de peito aberto e coração feliz com as informações pedidas.

 

*Extraído do texto publicado na revista Caros Amigos.

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