Em 1979, em plena ditadura militar, centenas de milhares de brasileiros mobilizaram-se em torno de uma causa nobre, justa e corajosa; a anistia ampla, geral e irrestrita para todas as vítimas do autoritarismo e do Terror de Estado. Resgatando, recuperando e consolidando iniciativas e movimentos que vinham desde os primeiros anos da década de 70, os Comitês Brasileiros de Anistia que se formaram em 78 e 79 deram o impulso final para que a sociedade brasileira apagasse essa mancha sangrenta de sua história.

Familiares de presos e torturados, de perseguidos e cassados, de exilados e desaparecidos, e de assassinados; estudantes, advogados, parlamentares, professores, políticos, intelectuais, jornalistas, religiosos, artistas; mães de família, trabalhadores, sindicalistas, simples cidadãos – todos engajaram-se na luta, porque todos se sentiam, direta ou indiretamente, vítimas da ditadura.

A marca principal da campanha foi a unidade política: batalhou-se pela liberdade – ou pelo resgate da memória – de comunistas, socialistas, trotsquistas, anarquistas, trabalhistas, democratas, independentes, sem discriminação nem sectarismo. Diante da repressão, forças democráticas e de esquerda unificaram-se, sem escamotear divergências nem dissolver fronteiras, mas extraindo da diversidade a unidade necessária para enfrentar a ditadura.

Foram anos de avanços e recuos, de esperança e desespero, de lágrimas e sorrisos, de derrotas e vitórias. Foram anos que se incrustaram na história pessoal e política de todos os que se engajaram na luta, e que marcaram, também, a história do Brasil.

Hoje, dez anos depois, é necessário um balanço. A anistia foi conquistada, mas não foi ampla, geral e irrestrita. Os aparelhos e mecanismos de repressão não foram desmontados, como se queria. A tutela militar sobre a sociedade civil retraiu-se mas não desapareceu. Direitos e garantias individuais não foram inteiramente restituídos aos que deles foram privados. As liberdades políticas e civis ampliaram-se, mas freqüentemente são violadas. Os direitos humanos e de cidadania continuam espezinhados. Imensas massas populares estão sem terra, sem emprego, sem casa, sem comida, sem teto, sem chão, sem saúde, sem instrução, cultura ou lazer. Há uma guerra desigual no campo: latifundiários poderosos e multinacionais gigantescas usam a força das armas e da imunidade oficial para expulsar, esmagar e matar o trabalhador que, para resistir, só tem sua mão calejada e seu olhar desesperado. Nas cidades, o vazio de políticas sociais é preenchido com miséria, violência e corrupção. Nas instituições, reina o descrédito. No Governo, a indiferença pela sorte do povo. Os ricos são cada vez mais ricos e mais poucos, os pobres cada vez mais numerosos e empobrecidos. Estamos numa democracia formal, e isso é o resultado de muitas lutas. Mas ainda continuamos muito longe de uma democracia de verdade, econômica e social, popular e cotidiana.

Dez anos depois, orgulhamo-nos todos das lutas que travamos e das vitórias que conquistamos. Mas neste momento, é preciso renovar nossos compromissos: não há progresso sem transformação, não há transformação sem democracia, não há democracia sem liberdade, não há liberdade sem luta.

São Paulo, agosto de 1989

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