Por José Geraldo Couto.

Rememória faz inventário da esquerda
Coletânea reúne 18 longas entrevistas com figuras como
Betinho, Antonio Candido e Florestan Fernandes

Rememória – Entrevistas sobre o Brasil do Século 20. O título é infeliz, o subtítulo soa pretensioso, mas o livro é excelente. Trata-se de uma reunião de entrevistas realizadas nos últimos dez anos pela revista Teoria e Debate, do PT, com importantes personagens da esquerda brasileira.
Alguns, como Betinho, Florestan Fernandes e Paulo Freire, já morreram, o que só aumenta a importância de seus alentados depoimentos. Outros, como Antonio Candido, Lélia Abramo, Clara Charf, Jacob Gorender e dom Pedro Casaldáliga, continuam – literalmente – na luta. Nestes tempos de cinismo e acomodação globais, ler uma tal antologia de entrevistas parece um programa fora de moda. Mas não é.
Mais do que um livro de debate político-ideológico, Rememória é um inventário de existências atribuladas, apaixonadas, belas. O único ponto comum entre elas é a auto-entrega generosa à luta pela transformação do mundo.
Há claro, um aspecto de informação histórica que interessará sobretudo aos estudiosos dos movimentos políticos da República brasileira. Estão ali, afinal, vistos “por dentro”, todos os impasses, ilusões, erros, rixas e rachas da esquerda brasileira.
Trotskistas, maoístas, stalinistas, católicos – todos os caminhos que levariam, pretensamente, a uma sociedade mais humana se cruzam nesses fragmentos de memória. O resultado é uma história matizada e multifacetada da esquerda brasileira.
Mas é também muito mais que isso – e aí é que pode interessar ao leitor alheio ao debate político.
Numa época em que a leitura de biografias quase substitui a da literatura de ficção, Rememória oferece os esboços de duas dezenas de biografias notáveis.
Não é preciso ser marxista ou petista para se comover, por exemplo, com a história de um Florestan Fernandes, filho de lavadeira que teve de começar a trabalhar aos seis anos em tarefas como “limpar as costas de fregueses em barbearias para ganhar gorjetas”.
Depois, Florestan fez “madureza” para completar o colégio e acabou se tornando um de nossos maiores sociólogos, formador de gente de memória curta como nosso atual presidente da República.
Não há como não rir de um episódio como o do período em que o sociólogo Betinho foi trabalhar numa fábrica de porcelana para cumprir o programa de proletarização imposto por seu grupo político, a Ação Popular.
As aventuras da atriz Lélia Abramo na Itália fascista, os percalços de Clara Charf na clandestinidade com seu companheiro Carlos Marighella, a saga pedagógica de Paulo Freire, as oscilações de Antonio Candido entre a literatura e a política – histórias assim fazem de Rememória um livro cheio de vida e calor.
Num tempo em que tanta gente tem pressa em render-se a um recauchutado “laissez-faire” (tradução: “dane-se o mundo”), talvez seja bom conhecer um pouco do lado “gauche” da vida.

Publicada no jornal Folha de S. Paulo, 16/12/97.

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