Por Pedro Tierra*

“O PT não concebe o socialismo como futuro inevitável a ser produzido necessariamente pelas leis econômicas do capitalismo. Para nós, o socialismo é um projeto humano cuja realização é impensável sem a luta consciente dos explorados e oprimidos. Um projeto que, por essa razão, só será de fato emancipador na medida em que o concebemos como tal: ou seja, como necessidade e ideal das massas oprimidas, capaz de desenvolver uma consciência e um movimento efetivamente libertários. Daí porque recuperar a dimensão ética da política é condição essencial para o restabelecimento da unidade entre socialismo e humanismo.”

(Resoluções de Encontros e Congressos 1979-1998,
Editora Fundação Perseu Abramo,
“O Socialismo Petista”, pág. 434)

Que perguntas fazer a um partido brasileiro que celebra 24 anos? Um partido que, ao nascer se definiu como um projeto socialista, democrático e de massas? Um partido popular que percorreu mais de duas décadas sob fogo cerrado das elites e dos meios de comunicação? Eles, a cada encontro ou congresso do partido decretavam por antecipação: “o PT racha!” Não rachou, mas nunca foi monolítico. Não abriu mão do direito de tendência – inaceitável para a esquerda tradicional – e do debate necessário à construção de um projeto democrático, incompreensível para as elites oligárquicas. Que perguntas fazer a uma experiência que alguém já definiu como pós-comunista e pós-social democrata, depois de um ano à frente do governo federal?

Há muitos anos o combativo militante – ninguém duvida disso – Bertolt Brecht perguntava aos companheiros do seu partido, bem diferente do nosso, mas que talvez sonhassem alguns dos sonhos que sonhamos agora:

MAS QUEM É O PARTIDO?

Mas quem é o partido?
Ele fica sentado em uma casa com telefones?
Seus pensamentos são secretos, suas decisões
Desconhecidas?
Quem é ele?

Nós somos ele.
Você, eu, vocês – nós todos.
Ele veste sua roupa, camarada, e pensa com a sua cabeça.
Onde moro é a casa dele, e quando você é atacado
Ele luta..

Mostre-nos o caminho que devemos seguir, e nós
O seguiremos com você, mas
Não siga sem nós o caminho correto
Ele sem nós
É o mais errado.
Não se afaste de nós!
Podemos errar, e você pode ter razão, portanto
Não se afaste de nós!

Que o caminho curto é melhor que o longo, ninguém
Nega
Mas quando alguém o conhece
E não é capaz de mostrá-lo a nós, de que serve
Sua sabedoria?
Seja sábio conosco!
Não se afaste de nós!”

(Poemas 1913 – 1956, Ed. Brasiliense, S. Paulo, 1986)

Talvez, as perguntas do poeta-militante Bertolt Brecht sejam pertinentes hoje. Para refletirmos sobre a ferrugem burocrática que corrói a sensibilidade de alguns e o veneno da arrogância que conduz outros a se imaginarem portadores da verdade absoluta. Não para encontrar as respostas mas para formular corretamente as perguntas é necessário recuperar o caminho percorrido.

O movimento operário que deu o berço e o impulso ao Partido dos Trabalhadores, no final dos anos setenta, foi o sinal definitivo do esgotamento da ditadura militar. Revelou aos olhos de um país castigado durante quase duas décadas de perseguição, de exílio, de delação, de tortura e de tentativas malsucedidas de resistência armada, nas ruas e nos campos, ou de resistência pacífica dentro do parlamento consentido, um sujeito social novo. Emergia com insuspeitada capacidade de convocar e mobilizar uma gigantesca massa de trabalhadores até ali imperceptíveis dentro do seu uniforme azul. Imperceptíveis até o momento em que cruzaram os braços num movimento grevista que haveria de sacudir o país.

Por outro lado, a emergência dos movimentos sociais dos trabalhadores suscitada pelo impulso de S. Bernardo, estabelecia um ponto final na dispersão de duas décadas, nas esquerdas brasileiras. De algum modo, ela antecipava a crise dos partidos socialistas e comunistas tradicionais, não por uma inspiração intelectual e profética, mas pela surda determinação de uma realidade social que exigia um novo personagem no cenário político do país. É possível dizer que vivíamos um processo de refundação da esquerda no Brasil, sob o impulso do novo movimento operário que infundiu nela a energia social capaz de livrá-la do gueto para onde fora empurrada pela repressão do Estado policial.

Em raros momentos da história do Brasil assistimos a algo semelhante. O movimento operário do ABC e a reação em cadeia que se desatou em diferentes regiões do país surpreendeu de maneira fulminante, a ditadura militar que se perguntava: como pode se gestar tamanha força nos alicerces da sociedade sem que os controles policiais acusassem seus movimentos? A estupefação da esquerda tradicional não foi menor. Como era possível emergir um movimento daquelas dimensões espontaneamente, sem a fecundação prévia da teoria revolucionária, sem a mão organizadora dos partidos de vanguarda? É plausível considerar que a realidade da classe operária brasileira naquele momento era mais fecunda e mais revolucionária que a capacidade teórica dos partidos da esquerda tradicional.

O Partido dos Trabalhadores constituiu-se assim, no estuário de uma longa busca. Atraiu uma multiplicidade de experiências de lutas vindas de várias vertentes da complexa rede de organizações populares que ganharam contorno sob a ditadura: o novo sindicalismo; os movimentos contra a carestia de vida; as Comunidades Eclesiais de Base; as Pastorais Populares; as organizações da esquerda clandestina que haviam tentado a resistência armada ou militantes dispersos, remanescentes delas, e intelectuais que, dentro das universidades ou em centros de pesquisa, produziam um pensamento de resistência de diversos matizes à ditadura. A eles se seguiu, de pronto, a adesão do movimento dos trabalhadores do campo, renascido com o apoio das pastorais populares e de alguns grupos da esquerda clandestina, em diferentes regiões do país, constituindo as Oposições Sindicais ou fundando novos sindicatos. Por fim atraiu personalidades da resistência que atuavam sob a legenda do Movimento Democrático Brasileiro, dentro do Parlamento e grupos de militantes que se deslocaram dos antigos partidos comunistas.

Há um aspecto pouco considerado pelo olhar de quem tem estudado as origens do PT: o 10 de fevereiro foi marcado pelo encontro de várias gerações de militantes revolucionários. Talvez por não se enquadrar nas condicionantes objetivas, de natureza econômica ou social, mas por tratar-se de um laço que diz respeito ao subjetivo. Não quero ceder à tentação de dizer, lembrando o livro do Daniel Arão Reis sobre a experiência das esquerdas nos anos sessenta “A revolução faltou ao encontro”, que ela, com algum atraso, é verdade, e com o rosto modificado, compareceu no 10 de fevereiro.

O momento em que os companheiros Mário Pedrosa e Apolônio de Carvalho entraram, sob os aplausos comovidos dos militantes, no plenário do Colégio Sion traz consigo uma preciosa carga de símbolo. Os revolucionários brasileiros tiveram com a participação deles e de outros, o privilégio de não perder o laço entre uma geração de lutadores e as gerações seguintes; entre uma experiência de luta e outra; entre sonhos de uma geração e os de outra. Não tivemos aqui a trágica ruptura de uma geração assassinada como ocorreu em outros países da América Latina, particularmente, na Argentina, com as conseqüências que conhecemos.

A presença e o compromisso de Apolônio de Carvalho, Mário Pedrosa, Antônio Cândido, Lélia Abramo, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros, trouxe consigo a possibilidade de reconstituir o laço entre os sonhos das gerações de revolucionários brasileiros do século XX e o novo movimento operário. O Partido que nascia tornou-se, por eles, capaz de recolher uma fecunda herança de lutas libertárias, socialistas e democráticas que alimentaria seus militantes nos anos seguintes.

A sedução da esfinge

Passadas duas décadas, desde a reconquista do regime representativo, nenhum organismo de natureza política ou social, religiosa, civil ou militar escapou à dilaceração em que se encontra a sociedade brasileira. O volume, a qualidade e o ritmo das mudanças que ocorreram, nos últimos 20 anos, aprofundaram o abismo que já separava ricos de pobres no país. Esse processo ocorreu simultaneamente com a derrota da ditadura. A miséria econômica de milhões de trabalhadores fatalmente incide sobre a ação dos seus movimentos sociais, debilitando-os, e sobre a sociedade política retirando-lhe legitimidade. Abriu-se assim, nos anos noventa, uma crise de legitimidade tanto nos movimentos sociais como nos partidos. Sob a pressão das políticas neoliberais que resultaram em altas taxas de desemprego, no aviltamento dos salários, os movimentos perderam consideravelmente sua capacidade de mobilização e se limitaram a uma defesa quase formal das conquistas anteriores. Na contra-mão desse processo, nutrindo-se da energia dos movimentos na década anterior, o Partido dos Trabalhadores ocupou sistematicamente espaços cada vez mais amplos na disputa política do país. Ampliou suas bancadas parlamentares, assumiu governos estaduais, duas centenas de prefeituras entre elas as de importantes metrópoles do país e, num processo eleitoral inédito no Brasil, elegeu Luís Inácio Lula da Silva Presidente da República.

De certo modo o PT encarnou, ao longo desses vinte e quatro anos, o grito organizado dos excluídos. Ofereceu-lhes uma voz, na institucionalidade política estabelecida. Essa forte presença dentro da moldura institucional trouxe consigo uma inescapável ambigüidade para um partido que busca manter seus laços com as lutas sociais que lhe deram raiz.

Na medida em que veio se aprofundando o abismo entre a economia formal e informal; entre os trabalhadores de uma e de outra; entre os que sobrevivem, ainda que precariamente, num posto de trabalho e os que amargam o desemprego; entre os representantes e os representados; entre os eleitores e os eleitos; entre os que moram e os que só têm o viaduto; entre os que comem e os que disputam com os ratos o lixo das grandes cidades para se defender da fome, os movimentos sociais e o Partido dos Trabalhadores passaram a ser acuados pela esfinge do Estado brasileiro assentada sobre os alicerces da exclusão social.

Essa esfinge velha de cinco séculos, tem demonstrado enorme capacidade de destruir a sangue e fogo, ou para digerir imperceptivelmente, as mais autênticas e autônomas formas de organização social e política dos excluídos. À medida que avançamos para dentro de um território hostil, que modifica constantemente seus contornos e regras, não podemos deixar de ter os olhos fixos nas classes perigosas, de onde viemos, para escapar do deslumbramento e da sedução da esfinge. Esse é o significado último da proposta do Presidente da República de fazer do combate à fome e à miséria a prioridade do governo.

Há quem diga que a transição brasileira nunca termina, porque a sociedade não definiu as coordenadas do porto de chegada. Conduzindo o transatlântico, sem dar cavalo de pau no meio do nevoeiro, o Partido dos Trabalhadores deve apresentar ao governo e ao país a cartografia que veio desenhando ao longo do último quartel do século XX. Não apenas para responder aos tucanos – aquela ave de bico longo, vista curta e sem grande autonomia de vôo – mas também para dialogar com seus críticos à esquerda a respeito do fato de que nenhuma força de esquerda conduziu processo semelhante de transição para um novo paradigma, nas novas condições de supremacia do capital financeiro sobre os fluxos da riqueza produzida no mundo, ignorando as fronteiras dos estados nacionais.

Antes de concluir creio que é necessário recuperar o sentido das palavras que abrem essa reflexão, recolhidas do texto “O socialismo petista”. Um documento que marca a trajetória do partido na busca de novas sínteses que incorporem a fortuna das diferentes vertentes da esquerda que se encontraram na aventura dos trabalhadores brasileiros, nessas últimas décadas. A experiência exitosa que encarnamos não pode ser encarada como um simples ato de vontade ou como obra do talento de alguns dirigentes inspirados. Não podemos perder a perspectiva de que a energia que ergueu e sustenta o PT na cena política do Brasil resulta do fato de que o partido nasceu de uma necessidade histórica incontornável: uma base de classe forte, ampla, agregadora de outros setores sociais, com vocação transformadora desejava dotar-se do instrumento político por excelência – o partido – para realizar seu objetivo de converter-se em uma nova alternativa para o país.

Talvez a pergunta que devemos fazer ao PT, nos seus 24 anos, seja: Qual o papel de um partido socialista, democrático e de massas na relação com um governo firmado sobre uma aliança de centro esquerda, que inclui setores conservadores, para conduzir uma transição que as elites não conseguiram ou não desejaram realizar?

Brasília, 10 de fevereiro de 2004.


* Pedro Tierra(Hamilton Pereira) é Presidente da Fundação Perseu Abramo.

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