Segundo período – 1967-1969

É somente a partir do final de 1966, com a absolvição dos acusados pelos IPMs [inquéritos policiais militares], a relativa liberalização do regime e a reorganização das entidades estudantis, que começa a renascer o espírito universitário. Reinicia-se a discussão sobre o papel e a estrutura da universidade, discussão esta que começa com os problemas criados pelos chamados "excedentes" e desemboca na questão da reforma universitária.

Na verdade, o caráter arcaico da universidade brasileira e sua incapacidade de atender a uma demanda social explosiva preocupava também os órgãos federais. Já estava patente para todos a necessidade de expandir o ensino superior e a impossibilidade de realizar esta tarefa sem modernizar a estrutura da universidade. Os célebres acordos MEC-USAID constituíam exatamente a expressão dessa orientação, que buscava na assessoria norte-americana o auxilio para impor um novo modelo de universidade.

Ante a violenta oposição levantada nos meios intelectuais e estudantis contra os acordos MEC-USAID e com a pressão generalizada pela reforma, o governo criou, em 1968, um Grupo de Trabalho encarregado de estudar a reforma e propor um outro modelo.

A reforma e movimento estudantil
Deste modo, sob a pressão dos que não conseguiam ingressar no ensino superior por falta de vagas (os excedentes), generaliza-se o debate sobre as reformas: de um lado, a discussão fechada que se processa no âmbito do Conselho Federal de Educação; de outro, as propostas cada vez mais agressivas das lideranças estudantis, que utilizavam a bandeira da reforma como instrumento de sua atuação política contra o regime vigente. Entre ambos, o Congresso, que ainda guardava ecos dos grandes debates sobre educação que se haviam desenrolado em 1961, por ocasião da Lei de Diretrizes e Bases da Educação.

O processo agudo de radicalização do movimento estudantil representa, no ambiente político brasileiro, a versão nacional do grande momento de revolta dos estudantes que sacode então os Estados Unidos e a Europa e culmina, em maio de 68, na França. Em termos de uma proposta de reforma da universidade, a reivindicação estudantil cristaliza-se em torno da exigência da paridade, representação em igual número de alunos e professores em todos os níveis decisórios.

Oposição a Gama e Silva
Deste modo, na USP, a cúpula dirigente, onde desde 1964 havia predominado o grupo que sempre fora hostil ou indiferente à necessidade de reforma, vê-se prensada entre exigências diversas de mudança que partem, de um lado, do governo no qual se apoiavam e, de outro, dos estudantes e jovens professores que não conseguiam mais controlar. No ambiente conturbado pela radicalização dos estudantes, desencadeia-se uma verdadeira crise na Universidade. Nesse momento, organiza-se, no próprio Conselho Universitário, um movimento de resistência à influência do reitor Gama e Silva, que se encontrava afastado da USP para exercer o cargo de ministro da Justiça. Esta resistência se manifestou em 1967 e novamente em 1968, na composição das listas tríplices para a nomeação do vice-reitor (que seria o reitor em exercício), nenhuma das quais incluía nomes de confiança do então ministro. É assim que assume a Reitoria, em 1967, Mário Guimarães Ferri, então Diretor da Faculdade de Filosofa, Ciências e Letras, o qual toma a iniciativa de constituir uma Comissão de Reestruturação da Universidade de São Paulo. Sob a presidência do próprio Ferri e incluindo professores de diversas tendências, a Comissão trabalhou no sentido de elaborar um projeto que pudesse ser aceito por uma parcela ponderável dos catedráticos da Universidade. Faziam parte da comissão Adalberto Mendes dos Santos, Carlos da Silva Lacaz, Eurípedes Malavolta, Guilherme Arbenz, Luiz de Freitas Bueno, Paulo Carvalho Ferreira, Tarcísio Damy de Souza Santos, Roque Spencer Maciel de Barros e, como concessão à grande massa dos assistentes que liderara a crítica à estrutura vigente, Erasmo Garcia Mendes, então presidente da Associação de Auxiliares de Ensino da USP (antecessora da atual ADUSP).

O "Relatório Ferri"
O projeto, conhecido como Relatório Ferri, encaminhado às diversas congregações, foi criticado pelos grupos mais empenhados numa reforma de profundidade, nos debates que se promoviam independentemente em toda a Universidade, dentro do clima de exaltação política que marca essa fase da vida universitária.

Não caberia, neste trabalho, uma análise de todo este conturbado período onde se processa um enfrentamento cada vez mais direto entre contestação (principalmente a estudantil) e as forças repressivas. Basta lembrar a ocupação da Faculdade de Filosofia pelos alunos e a breve tentativa de realizar ali o ideal comunitário da paridade visto como início de uma revolução social; a violência da repressão que resultou, em 3 de outubro de 1968, na morte de um estudante e a completa depredação do prédio da rua Maria Antônia por grupos paramilitares de direita, fortemente armados e protegidos por forças policiais.

[…]

A partir do episódio da Maria Antônia começa o desmantelamento do movimento estudantil, sob violenta repressão. Em 12 de outubro, com a prisão de todos os participantes do XXX Congresso da UNE, o movimento é destruído.

É difícil uma apreciação objetiva de todo este conturbado período. A radicalização crescente das reivindicações estudantis afastou do processo de discussão da reforma muitos professores que sempre haviam defendido a democratização da universidade. Outros conseguiram manter um diálogo constante. Alguns, especialmente os mais jovens, incorporaram integralmente as posições dos alunos. Os setores mais conservadores, marginalizados e impotentes, aguardavam a ação repressiva externa. O AI-5 promulgado em 13 de dezembro, constituiu a realização das esperanças desse grupo.

Nesse meio tempo, a Universidade esboçava um outro movimento de reação às pressões externas, com a eleição do novo vice-reitor. O governador nomeou o nome mais votado da lista tríplice, o do professor Hélio Lourenço de Oliveira. Resistindo às interferências policiais dentro da USP, o novo reitor retoma o processo de discussão da reforma universitária, buscando a colaboração dos grupos mais empenhados na democratização da Universidade. Esses grupos haviam se cristalizado em tomo das chamadas comissões paritárias, que então se instalaram em muitas faculdades e cujo objetivo era fornecer subsídios para as reformas.

As comissões paritárias
É necessário reconhecer que essas comissões conseguiram realizar um trabalho de grande envergadura e profundidade. Os relatórios finais, concluídos nas vésperas do profundo golpe que representou para a Universidade a demissão dos professores por força do AI-5, constituíam um subsídio valioso por conterem uma análise global da instituição e estarem inspirados num desejo muito sincero de contribuir para a criação de uma universidade que servisse aos interesses do País. Além do mais, tendo sido elaborados por grupos descompromissados com a estrutura de poder vigente, puderam efetivamente oferecer uma proposta renovadora.

É nesse contexto que cabe analisar o episódio das demissões e aposentadorias por força do AI-5.

Com o AI-5, o governo e os grupos de direita que nele se apoiavam são liberados de todas as penas legais para a realização de um completo expurgo nas instituições civis e militares. No confuso período marcado pela doença e morte de Costa e Silva, os grupos com acesso ao poder promulgam listas imensas de cassações, demissões e aposentadorias.

Em 28 de abril de 1969, a USP é atingida. Um estranho decreto datado de 25 do mesmo mês resolve aposentar "nos cargos que ocupam nos órgãos da Administração Pública Federal " (grifo nosso) 42 pessoas, entre as quais diversos intelectuais e três professores da USP: Florestan Fernandes, Jaime Tíomno e João Batista Villanova Artigas.

O primeiro decreto
"O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968 e, tendo em vista o disposto no artigo 19, item II, do Ato Complementar no 39, de 20 de dezembro de 1968, resolve

APOSENTAR: Nos cargos que ocupam nos órgãos da Administração Pública Federal, com os vencimentos proporcionais de tempo de serviço, os seguintes servidores:

Abelardo Zaluar
Alberto Coelho de Souza
Alberto Latôrre de Faria
Augusto Araújo Lopes Zamith
Aurélio Augusto Rocha
Bolívar Lamounier
Carlos Alberto Portocarrero de Miranda
Eduardo Moura da Silva Rosa
Elisa Esther Frota Pessoa
Eulália Marias Lahamayer Lobo
Florestan Fernandes
Guy José Paulo de Holanda
Hassim Gabriel Merediff
Hélio Marques da Silva
Hugo Weiss
Ildico Maria Erzsebet
Jaime Tiomno
João Batista Villanova Artigas
João Cristovão Cardoso
João Luís Dubac Pinaud
José Américo da Mota Pessanha
José Leite Lopes
José de Lima Siqueira
Lincoín Bicalho Roque
Manoel Maurício de Albuquerque
Maria Célia Pedroso Torres Bandeira
Maria Helena Trench Villas Boas
Maria Heloisa Villas Boas
Maria José de Oliveira
Maria Laura Mouzihho Leite Lopes
Maria Yedda Leite Linhares
Marina São Paulo de Vasconcellos
Marina Coutinho
Mário Antônio Barata
Milton Lessa Bacios
Mirian Limoeiro Cardoso Lins
Moema Eulália de Oliveira Toscano
Plínio Sussekind da Rocha
Quirino Campofiorito
Roberto Bandeira Accioli
Sara de Castro Barbosa
Wilson Ferreira Lima
Brasília, 25 de abril de 1969; 148º da Independência e 81º da República.

1. COSTA E SIL VA
2. Luis Antônio da Gama e Silva
3. Tarso Dutra "

(Diário Oficial da União, 28 de abril de 1969, pág. 3.598.)

O erro do decreto
O erro flagrante do decreto que aposenta de órgãos federais três professores de uma universidade estadual, parece indicar que esses três nomes foram incluídos para "aproveitar o decreto" e que as informações sobre as quais o presidente deveria estar baseado para tomar decisões tão drásticas eram, para dizer o mínimo, incompletas ou erradas. Outrossim, pode-se supor que, no afã de punir desafetos, os autores das listas tinham se dispensado de obter informações fidedignas.

A aposentadoria desses três professores provocou o imediato protesto do vice-reitor em exercício, o professor Hélio Lourenço de Oliveira que substituía o reitor Gania e Silva, então afastado para exercer o cargo de ministro da Justiça. Era de Gama e Silva a assinatura que, junto com a do presidente e do ministro Tarso Dutra, concretizava este ato de arbítrio contra a Universidade.

O protesto do reitor teve resposta imediata. Com data de 29 de abril é publicado no Diário Oficial do dia 30, outro decreto dirigido especialmente contra a USP. Nele se aposentava, ou demitia quando fosse o caso, o reitor e mais 23 professores.

O segundo decreto

"MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA

DECRETO DE 29 DE ABRII, DE 1969

O Presidente da República, no uso da atribuição que lhe conferem os §§ 1º e 2º do art. 6º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, resolve

APOSENTAR:

Nos cargos ou funções que ocupam na Universidade de São Paulo com os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço, ou rescindir os respectivos contratos, quando for o caso, dos seguintes servidores:

Alberto de Carvalho da Silva
Bento Prado Almeida Ferraz Júnior
Caio Prado Júnior
Elza Salvatori Berquó
Emília Viotti da Costa
Fernando Henrique Cardoso
Hélio Lourenço de Oliveira
Isaías Raw
Jeán Claude Bernardet
Jon Andoni Vergareche Maitrejean
José Arthur Gianotti
Júlio Puddles
Luiz Hildebrando Pereira da Silva
Luiz Rey
Mário Schenberg
Octávio Ianni
Paulo Mendes da Rocha
Olga Baeta Heffiques
Paula Beiguelman
Paulo Alpheu Monteíro Duarte
Paulo Israel Singer
Pedro Calil Padis
Reynaldo Chiaverini
Sebastião Baeta Henriques
Brasília, 29 de abril de 1969; 148º do Independência e 81º do República.

A. COSTA E SILVA
Luis Antônio da Gama e Silva
Tarso Dutra "
(Diário Oficial da União, 30 de abril de 1969, pág. 3.699.)

Mais erros
Novamente se verifica uma grave incorreção no próprio texto do decreto. Dos 24 professores aposentados da USP, nada menos do que seis não eram da instituição.

Caio Prado Júnior não tinha cargo na universidade. Possuía apenas o título de livre-docente, que lhe dava o direito de poder vir a disputar um concurso de cátedra, o que o tornara uma ameaça latente e constante para os professores da Faculdade de Direito. Júlio Puddles fora demitido em 1964, durante o IPM da Faculdade de Medicina e, embora absolvido de todas as acusações no processo a que respondeu na Justiça Militar, não havia sido readmitido. Em situação semelhante estavam Luiz Rey e Reynaldo Chiaverini, este último então simples médico do Hospital das Clínicas. Sebastião Baeta Henriques e sua mulher, Olga Baeta Henriques, eram pesquisadores no Instituto Butantã, não tinham nenhum vínculo com a USP. Finalmente, Pedro Calil Padis era professor de Economia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara – não era, nem nunca tinha sido docente da USP.

Os vícios de origem que marcaram esses dois decretos demonstram claramente que nesses atos de arbítrio sequer se respeitou o mínimo de eqüidade que consistiria numa análise cuidadosa de informações fidedignas. Tem-se exata impressão de que foram as opiniões pessoais, os pedidos verbais de amigos ou aliados do poder, as pressões de facções interessadas no afastamento desta ou daquela pessoa que constituíram a matéria prima da qual emanaram os decretos.

De tal modo incorretos foram esses atos (e, nesse caso, pode-se imputar ao reitor e ministro da Justiça Gama e Silva, além do desprezo pela universidade, o desconhecimento das mais comezinhas precauções jurídicas) que tiveram que ser republicados "por terem saído com incorreções".

Assim, o decreto de 29 de abril é republicado no Diário Oficial de 20 de maio com o adendo "determinar a cessação de quaisquer outros vínculos com a mesma Administração, ainda que não tenham caráter empregatício" (Diário Oficial da União, de 20 de maio de 1969, pág. 4.269). Na verdade, a correção ainda não corrige, porque faz cessar vínculos inexistentes.

O decreto anterior, de 25 de abril, só é republicado em 17 de junho. À expressão "órgãos da Administração Federal" são acrescentadas as palavras "e na Universidade de São Paulo". Resulta disso um esdrúxulo decreto que atinge, de um lado, a generalidade da Administração Federal e, de outro, a especificidade de uma universidade estadual (Diário Oficial da União, de 17 de julho de 1969, pág. 6.056).

 

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