Depoimento de Roberto Saturnino Braga, senador (PT-RJ).

Por Roberto Saturnino Braga*

Foi a maior campanha da História do Brasil em termos de mobilização de massas: quase 5 milhões de brasileiros foram às ruas, em comícios que agitaram muitas dezenas de grandes e médias cidades, desde Curitiba, na segunda semana de janeiro de 1984, até Vitória, já no meio de abril, passando pelo Rio e duas vezes por São Paulo na fase final, puxando 1 milhão de manifestantes cada uma destas. Êxito completo de um planejamento político desencadeado pelos principais líderes da oposição ao regime militar, em novembro de 1983, em reunião no Palácio Bandeirantes.

Outros momentos houve em que o sentimento popular esteve na mesma altura, quiçá até mais exalçado: a campanha da Abolição, por exemplo. Eu mesmo, como militante, tive oportunidade de participar de outra campanha vasta e arrebatadora, a do “petróleo é nosso”, quando o sentimento nacional atingiu um auge de qualidade hoje quase impensável. Mas os gigantescos caudais de gente que pediam eleições pelo Brasil afora naqueles meses iniciais de 1984 jamais tinham sido antes vistos.

Claro que, para mim, o comício do Rio teve um significado todo especial, e me fez experimentar uma sensação absolutamente única: a de falar para um oceano de gente eletrizada e atenta, num ato político que era sem dúvida, e de longe, o maior da história até então. Só dias depois o de São Paulo, no Anhangabaú, o igualou. Líderes políticos da maior expressão lado a lado com figuras legendárias como Sobral Pinto e Barbosa Lima. No dia seguinte, ainda emocionado, eu falava no Senado de “algo que não é nem insólito nem extraordinário porque é mais do que isso, é único, é fato único até hoje na história do nosso país”.

Antes das Diretas Já, duas tentativas políticas haviam buscado o apoio popular para derrubar a ditadura: a anticandidatura de Ulysses Guimarães e a candidatura militar de oposição, do general Euler Bentes. Foram episódios que tiveram sua importância no desgastar o militarismo mas que foram marcados, desde o início, pela incredulidade. Na campanha das Diretas, ao contrário, o povo acreditou que havia chegado o momento. E ao sentir assim, o povo tinha razão: mesmo não tendo sido aprovada, a Emenda Dante de Oliveira deu partida à contagem regressiva do regime militar. E essa foi a razão principal de não ter havido protestos maciços no dia seguinte ao da grande frustração, como esperava o governo – o povo sabia que havia determinado, com a sua presença maciça na rua, o fim do regime, e que as eleições voltariam com certeza. O próprio presidente Figueiredo logo correu a propor uma emenda constitucional restabelecendo as Diretas ao fim do mandato do seu sucessor.

Lembro-me da divergência funda que então se instalou entre Tancredo Neves, que queria negociar uma redução daquele prazo proposto, com um mandato mais curto do sucessor, e Ulysses, irredutível – “a luta continua”- repudiando qualquer negociação e insistindo na apresentação de uma subemenda à proposta Figueiredo, declarando a eleição imediata. Naquele embate de bastidores, acompanhado pelos generais, Tancredo começou a ganhar a última presidência pelo voto indireto.

A condição de reverberação popular das iniciativas políticas está na avaliação da respectiva viabilidade pelo sentimento do povo. A maioria dos líderes políticos daquele momento entendeu que a campanha de rua estava esgotada, sua continuidade não era mais viável, não só pelo gasto imenso de energia, mas principalmente pela crença geral de que não era mais necessário o pesado dispêndio adicional de forças, já que a volta das Diretas estava garantida. A maioria, com a opinião pública, seguiu Tancredo nas negociações, e o comandante legítimo da maior campanha popular da nossa história, o “Senhor Diretas”, foi alijado, honrosamente, do comando dos acontecimentos.

A avaliação da viabilidade política não é nem pode ser científica. Ela se informa de elementos da realidade – e no recolhimento dessas informações usa instrumentos científicos – mas ela é feita pela via da sensibilidade humana, e por isso mesmo a política é e será muito mais arte que ciência. E ninguém vai nunca duvidar da apuradíssima sensibilidade política de Ulysses Guimarães. Ele certamente sabia que a continuidade da campanha “Diretas já” era inviável. Mas sabia também que, pela radicalidade das posições necessariamente assumidas no comando da oposição à ditadura, e na condução da própria campanha das diretas, a sua candidatura à presidência numa negociação com os militares era ainda muito mais inviável. Esperar outra eleição seria fatal: a política é feita de momentos, e o seu era aquele; num momento posterior, outros valores novos se levantariam, ele bem sabia. Era inevitável o seu honroso revés. A política é cheia desses contratempos.

Vinte anos passados nos colocam hoje um enorme desafio político, o de fazer acreditar, a Nação Brasileira, profundamente, que aquela gigantesca e memorável campanha valeu a pena, isto é, definitivamente, terminantemente, que a democracia vale a pena. E isso vai depender, decisivamente, de que o Governo Lula, ao final do seu período, preencha as brilhantes expectativas acendidas com a sua eleição: expectativas de Justiça e de Soberania.

Eu o creio. De fato. E com muita convicção.


*Senador (PT-RJ)

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