Eu estava em Salvador desde janeiro de 1965. A Bahia tinha sido o nosso refúgio depois do doloroso episódio de Brasília, quando fomos obrigados a abandonar o projeto ao qual pretendíamos dedicar as nossas vidas: o de contribuir para a construção da Universidade aberta, progressista, compromissada com os interesses da coletividade nacional, que havia sido idealizada por Anisio Teixeira e Darcy Ribeiro.

Aos poucos tínhamos conseguido nos recuperar dos traumas da invasão militar da Universidade, da prisão e demissão do Perseu, do meu desligamento definitivo da vida universitária, e refazer nossa vida profissional. Perseu tinha voltado a lecionar, agora na Universidade da Bahia, e eu trabalhava no projeto de Reforma Administrativa do Estado.

Não posso dizer que nossa vida tivesse sido tranqüila nos quase quatro anos decorridos: vivíamos sob um regime ditatorial e, para os inconformados, como nós, com esse estado de coisas ilegítimo, era permanente o estado de tensão.

Meu filho tinha menos de 11 anos e minha filha mais velha menos de 13, quando tiveram a sua primeira experiência de enfrentar os cassetetes e bombas de gás lacrimogêneo da polícia, durante as manifestações contra a ameaça do ensino pago lideradas, em Salvador, pelos secundaristas. Eu, que trabalhava no andar térreo do Palácio do Governo, ouvia, pelas grandes janelas abertas para a praça Tomé de Souza, os carros de polícia transmitirem pelo rádio as ordens de repressão às manifestações estudantis que se sucederam naquele período. Podia ver, também, guardando as entradas do elevador Lacerda, os cachorros policiais, a custo contidos pelos soldados na sua ânsia de se atirarem sobre os transeuntes. Na Universidade, reinava um clima de cerco contra a liberdade universitária, o livre curso das idéias, e o debate das questões.

Mas apesar de todas as ameaças, veladas ou explícitas, muitas pessoas reagiam. Todas as brechas eram aproveitadas; na atuação de alguns professores e de alguns jornalistas que sempre encontravam formas de transmitir aos seus alunos ou aos seus leitores esclarecimentos que contrariavam as versões oficiais; nas demonstrações de simpatia da população às incessantes manifestações de inconformismo dos estudantes; nas atividades culturais contestatárias que eram acompanhadas avidamente (peças encenadas no heróico teatro Vila Velha, transmissão dos festivais de música da Record, shows como o Fino da Bossa de Ary Toledo e espetáculos teatrais como Liberdade, Liberdade, encenados em Salvador, com grande sucesso de público).

E aí, aconteceu o dia 13 de dezembro. Eu tinha chegado do trabalho, estava em casa me preparando para ir encontrar um grande amigo vindo do exílio, que estava passando por Salvador, quando o Perseu chegou com a notícia do AI-5. Desisti de sair de casa, a sensação era a de fim do mundo. O cerco se fechava, as brechas iam desaparecer, o que seria feito dos presos de Ibiúna, dos nossos jovens alunos e colaboradores que tinham saído pelo mundo para desenvolver todas as formas possíveis de resistência ao regime? Foi o que se viu: prisões arbitrárias, a tortura institucionalizada e profissionalizada, a total insegurança, a enlouquecedora falta de informações sobre as pessoas que eram arrancadas de suas casas e desapareciam; a pesada censura a todas as manifestações culturais independentes. E um silêncio aterrador, em que as pessoas mal se falavam ou se procuravam, porque ninguém sabia quem iria comprometer quem.

Ainda conseguimos ficar em Salvador por pouco mais de um ano. Mas, cada vez mais, nos preocupavam os boatos sobre as listas de expurgo na Universidade, em que o nome do Perseu figurava sempre entre os quatro primeiros. Por outro lado, as notícias de São Paulo eram assustadoras: detenções “para prestar informações”, casas vasculhadas, intimidações, que chegavam muito perto ou atingiam pessoas da família, tudo isso compunha um quadro que nos levou a considerar que não dava mais para permanecer na Bahia. Era necessário dar cobertura para esses familiares e, além disso, São Paulo, por pior que fosse, era um mercado de trabalho maior, que oferecia outras alternativas profissionais para o Perseu.

Nossa volta a São Paulo, em março de 1970, não foi uma “volta ao lar”. Tinha mais o sabor de um novo exílio. De mais um projeto de vida que era interrompido pela brutalidade da ditadura.

*Formada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Única contribuição para a Sociologia brasileira: participar, com Perseu Abramo, da formação de duas filhas sociólogas. Campo de trabalho: administração pública, especialmente na área de recursos humanos. Professora, também nessa área, apenas por dois anos (1962 a 1964), na Universidade de Brasília (a verdadeira). Atualmente, vice-presidente da Fundação Perseu Abramo.

 

[et_pb_top_posts admin_label=”Top Posts” query=”most_recent” period=”MONTH” title=”Mais recentes” /]

`