Pense numa instituição que baseia sua atuação num programa de longo prazo, calcado em pressupostos filosóficos e ideais de influência social; que, com o diário sentido da história, realiza reuniões periódicas de avaliação e reformulação de metas; que decodifica seus objetivos estratégicos com regras táticas, expressas em códigos escritos que estatuem a estrutura da organização e regulam seu funcionamento e sua dinâmica; que, de seus membros, exige rígida obediência a esses cânones, disciplina férrea, adesão inconteste e canina fidelidade; que se espalha por todo o território nacional mas que, na capital da República, mantém uma espécie de filial; que dispõe de consideráveis recursos materiais, entre os quais o de falar às multidões; que mobiliza inúmeros e qualificados recursos humanos; que, por tudo isso, é um interlocutor irrecusável do governo, queira este ou não; que, assim, pode fazer ou desfazer um ministro, um ministério, um presidente; e que, por fim mas não por último, se julga investida de um legítimo mandato popular.

Pergunta: que instituição é essa? Resposta: um partido político. Errado. É um jornal. Ou uma revista, uma emissora de tv ou de rádio, não importa. São os mcm, ou “meios de comunicação de massa”, no jargão especializado. Uma empresa privada de comunicação, para ser mais preciso.

Especular sobre o poder político da imprensa não é novidade. Mas talvez existam alguns ingredientes novos nesse panorama.

O agigantamento do poder privado na área de comunicações acelerou-se na década de 1960, em grande parte fortalecido pela ditadura militar, e acabou por influenciar o jornalismo, na forma e no conteúdo, nos princípios e nas regras básicas. E, talvez o mais importante, alterou a auto-imagem da imprensa, de seus proprietários e de muitos jornalistas em cargos de confiança, que passam a desenvolver novas expectativas e novas formas de consciência de seu papel na sociedade. Nem sempre as formas novas são visíveis a olho nu. Mas costumam aparecer com maior nitidez nos seus “manuais de redação”, espécie de estatutos e regimento interno desses entes político-partidários em que se transformaram os grandes jornais.

De modo geral, os manuais são uma confusa e rebarbativa salada de princípios morais, regras gramaticais, dicas ortográficas, opções de estilo, sutis orientações ideológicas e conselhos práticos do tipo “como tirar manchas de gordura” ou “como evitar erros de crase”. Às vezes, ensaiam vôos mais altos, no rumo da filosofia ou da metafísica.

A poderosa Editora Abril é a que menos diz no seu fino (95 páginas) Manual de Estilo. Mesmo assim, diz muito. Por exemplo, que o conteúdo de suas publicações reflete uma determinada filosofia, a qual é a seguinte:

“Como empresa, a Abril está empenhada em contribuir para a difusão da informação, cultura e entretenimento, para o progresso da educação, a melhoria da qualidade de vida, o desenvolvimento da livre iniciativa e o fortalecimento das instituições democráticas do país.” (p.15)

Alguma outra filosofia igualmente interessada na melhoria da qualidade de vida, mas que não encampe a defesa da iniciativa privada (que a Editora, pundonorosamente, chama de “livre” iniciativa) provavelmente não encontrará na Abril o mesmo empenho para a difusão de suas idéias.

Isso já era sabido, mas não deixa de ser interessante ver tais confissões por escrito. Diz logo em seguida o manual da empresa que seu objetivo é o de facilitar o trabalho de seus empregados regulares e eventuais “a partir de alguns critérios inspirados na única regra para a qual não se abrem exceções: a suprema regra do bom senso”(sic) (p. 15).

Quem define o que é “bom senso”? Isso o manual não diz, mas fica claro em sua leitura que o Supremo Ser capaz de produzir a Suprema Regra é um só: é essa entidade mítica, a Editora, ou seja, a propriedade privada de um oligopólio capitalista.

Os manuais do Estadão e da Folha são diferentes sob muitos aspectos, mas revelam como são parecidos os dois impérios e seus produtos jornalísticos.

Por exemplo, a questão da objetividade. O manual do Estadão ordena: “Faça textos imparciais e objetivos. Não exponha opiniões, mas fatos, para que o leitor tire deles as próprias conclusões (…) Lembre-se de que o jornal expõe diariamente suas opiniões nos editoriais, dispensando comentários no material noticioso.” (p. 18)

Ótimo! Aparentemente, a mais absoluta defesa do leitor! Mas algumas linhas abaixo, o manual abre exceções, “(…) em que o jornalista deverá (…) conduzir a notícia segundo linhas de raciocínio definidas a partir de dados fornecidos por fontes de informação não necessariamente expressas no texto”(sic). Novamente o arbítrio, novamente misteriosas entidades míticas que pairam por trás e por cima do repórter. Quem serão?

Na mesma questão, o manual da Folha é mais explícito: “Não existe objetividade em jornalismo. Ao redigir um texto e editá-lo, o jornalista toma uma série de decisões que são em larga medida subjetivas, influenciadas por suas posições pessoais, hábitos e emoções.”(p. 34)

Logo em seguida, o manual parece contradizer-se: “Isso não o exime, porém, da obrigação de procurar ser o mais objetivo possível.” E, faz, ainda, algumas recomendações “(…) que podem auxiliar na ampliação da objetividade possível” (p. 34).

Mas como? Existe ou não existe, afinal, a objetividade? Dizer que existe um “objetividade possível” é o mesmo que dizer: é possível existir alguma objetividade. Mas isso é contrário a dizer que “não existe” objetividade. Na realidade, essa confusão semântica reflete uma ambigüidade conceitual que, na prática, o jornal resolve da seguinte maneira: onde e quando interessa, o jornal procura “ampliar a objetividade possível”; outras vezes, libera total para decisões subjetivas. Só que tais subjetividades são menos “pessoais” do que os próprios jornalistas pensam, já que os empregados precisam ter, entre outros requisitos, “(…) afinidade com o projeto editorial da Folha” (verbete “Contratações”, p. 107).

A verdade é que os dois manuais tratam com desdenhosa superficialidade essa que é uma das questões cruciais da relação entre empresas de comunicação, sociedade e poder político. Ainda mais quando, como diz o manual da Folha: “Um jornal é, por excelência, um órgão formador de opinião pública. Sua força se mede pela capacidade que ele tem de intervir no debate público e, apoiado em fatos e dados exatos e comprovados, mudar convicções e hábitos, influir no rumo das instituições.” (p. 31) E completa, logo adiante: “Para a Folha, a opinião pública não é o conjunto da sociedade, mas sim os setores que interferem ativamente nos movimentos sociais, econômicos, culturais e políticos para conservar ou mudar seus rumos.”(p. 34)

É de justiça registrar que também faz uma concessão: “Assim como o jornal forma a opinião pública, ele é formado por ela, que tem meios parainfluenciá-lo e pressioná-lo.”(p. 31) Mas o manual da Folha, com mais de 200 páginas e cerca de 700 verbetes, é lacônico ao tratar dos meios que a opinião pública teria para influenciar o jornal. Tirando algumas obviedades sobre cartas e reclamações de leitores e o pluralismo da página três, a imensa maioria dos verbetes ensina como “formar” a opinião pública e não como ser formado por ela. Tanto o Estadão quanto a Folha, é claro, afirmam ser necessário ouvir “todos os lados”, evitar referências preconceituosas nas notícias, dar direito de defesa aos acusados etc. Mas essas são regras comezinhas do jornalismo, ou princípios básicos do Direito, e a obediência a tais normas não passa de uma obrigação: não pode ser ostentada como virtude.

Não é disso que se trata. O cerne da questão reside no tipo de relações que os jornais estabelecem com os leitores, com as fontes e com entes-objeto de suas matérias, sejam indivíduos ou instituições. A Folha, por exemplo, faz uma distinção imperativa e categórica entre ela, Folha (que escreve), e o leitor (que lê). O leitor tem um direito, que é o de ler aquilo que alguém escreve para ele. E quem escreve, isto é, a Folha, tem de ter total liberdade para escrever o que quiser. O leitor, portanto, tem o dever de lutar pela liberdade que a Folha precisa ter para escrever o que quiser, a fim de que ele, leitor, possa usufruir de ler o que a Folha escreve.

É claro que tudo isso está dito de outra maneira no manual da Folha:

“A liberdade de informar e opinar é a contrapartida do direito de acesso às informações e opiniões. Aquela liberdade, que deve ser usufruída por quem escreve, decorre deste direito, que deve ser usufruído por quem lê.” (p. 33) Esse é o intróito do verbete “Liberdade de imprensa”, que prossegue assim: “A Folha não reconhece legitimidade em qualquer restrição, legal ou ilegal, que se faça à liberdade de imprensa.”

Mais adiante, e depois de admitir legítima a possibilidade de punição por calúnia, injúria e difamação, o manual finalmente chega ao x do problema: “Selecionar e editar o que vai ser publicado não constitui restrição à liberdade de imprensa, porque a Folha entende que o leitor, titular do direito que corresponde a essa liberdade, delega ao jornal o mandato para agir assim.” (p. 33, grifo meu).

A noção de que a Folha é investida de um mandato delegado pelo leitor não aparece apenas como referência casual; merece um verbete inteiro, com o título “Mandato do Leitor”: “Nas sociedades de mercado, cada leitor delega ao jornal que assina ou adquire nas bancas a tarefa de investigar os fatos, recolher material jornalístico, editá-lo e publicá-lo. Se o jornal não corresponde às suas exigências, o leitor suspende esse mandato, rompendo o contrato de assinatura ou interrompendo a aquisição habitual nas bancas. A força de um jornal repousa na solidez e na quantidade de mandatos que lhe são delegados.”(p. 33)

Em outro trecho, o manual já havia dito: “A Folha recebe uma avaliação diária de seus leitores. Se ela não é positiva, o jornal corre o risco de perder o mandato que cada leitor lhe confere.”(p. 27)

Não se trata, apenas, de uma inovação no campo do jornalismo. Também as áreas da economia (a macro e a micro), do direito ? constitucional e comercial ?, da ciência política, da teoria geral do Estado, da legislação eleitoral, da sociologia, da antropologia cultural etc., ficaram profundamente enriquecidas com essa despretensiosa contribuição. Quando essa idéia se disseminar, os donos de padaria, os entregadores de leite, os fabricantes de sabonete, as montadoras de carros, a Sabesp e a Eletropaulo, os cobradores da cmtc , enfim, todos acorrerão ao Tribunal Superior Eleitoral para registrar seus diplomas e garantir seus mandatos.

Durante muito tempo, uma parte da esquerda criticou a grande imprensa por estar “a serviço da burguesia” ou “por ser um instrumento do Estado capitalista” ou “por fazer o jogo dos anunciantes” ou por tudo isso junto. Hoje em dia, os grandes meios de comunicação no Brasil, estão a serviço de si mesmos, criticam os governos em qualquer nível, são bajulados pelos anunciantes. Progressivamente, as empresas de comunicação vêm se tornando autônomas e independentes. Já não são mais “instrumentos” ou “aparelhos” da burguesia: são a nova burguesia, ou pelo menos, um dos seus setores mais importantes. A imprensa inverteu o processo: agora é ela que faz falar empresários, técnicos, burocratas e governantes. Muitas vezes, são os líderes de entidades associativas, empresariais ou não, que se transformam em porta-vozes dos projetos e até das idiossincrasias das empresas privadas de comunicação.

É por isso que muitos jornalistas dizem que não têm o rabo preso e não são ligados a nenhum partido: é que eles pretendem ser os próprios partidos, os mandatados do povo, os únicos e legítimos intermediários entre a sociedade civil e o poder político. A materialização de uma nova ideologia dominante, enfim.

Para terminar, o último verbete, da página 33 do Manual da Folha: Media-criticism ? É o gênero de crítica que analisa e opina sobre os veículos de comunicação. A Folha estimula a crítica de jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão no sentido de aprimorar a qualidade de seus respectivos produtos. A tendência do media-criticism no Brasil é fazer apologia ou ataques pessoais e críticas apenas ideológicas. Essa atitude deve ser evitada na Folha.

* Publicado na Revista Teoria e Debate nº 17 jan/fev./março 1992.

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