Ao assistir à condenação dos processados no chamado “mensalão”, antecipadamente promulgada pela mídia, me veio à memória algumas lições escritas, segundo consta, por Publicus, um tribuno da plebe durante a república romana, um pouco antes da era cristã. Como se sabe, a república escravista romana era constituída por duas classes principais: os patrícios, ou aristocratas, que detinham a propriedade territorial e os demais bens, aqui incluídos os escravos, e os plebeus, ou homens livres que não possuíam bens e subsistiam  principalmente do serviço no exército imperial. Nessa república antiga conviviam, ao lado dessas classes, pessoas que não pertenciam a nenhuma delas, como os escravos, considerados simples instrumentos de trabalho ou bestas falantes, comerciantes romanos, oriundos da plebe, e comerciantes estrangeiros das províncias dominadas por Roma.

A plebe, que constituía população muito superior à dos patrícios, lutava não só pelo direito à propriedade da terra, para poder trabalhar por seu sustento, mas também pelo direito de ter acesso a uma parte da riqueza gerada pelos escravos, e pelo direito de não ser açoitada ou morta pelos patrícios. Nesse processo de luta, a plebe se aproveitou não só da disputa dos reis contra os patrícios, mas também das guerras entre os patrícios, para conquistar o direito de eleger seus tribunos e permitir que eles os defendessem nas assembléias da cúria do exército e no Senado. Os tribunos eram considerados invioláveis, embora inúmeros deles tenham sido assassinados, tendo o poder de interferir em defesa dos plebeus acusados de crimes ou faltas, e de representar publicamente os interesses e reivindicações da plebe.

Nessa lide, os tribunos ora apoiavam os reis contra os patrícios, ora se aliavam a alguns patrícios para derrotar outros, ora mobilizavam os comerciantes em várias de suas disputas. Foi com base nessa experiência que Publicus listou algumas lições interessantes, que não deveriam ser esquecidas pelos tribunos da plebe. Abaixo a transcrição livre de algumas delas, que talvez sejam úteis para o momento atual:

* Não esqueças que vivemos uma eterna luta de classe contra os patrícios, nem mesmo quando estamos aliados a alguns deles para derrotar os piores, ou quando estamos com eles nas centúrias para defender Roma contra os bárbaros;

* Não esqueças que, ao nos aliarmos a um rei, que também é um patrício, estamos apenas tirando proveito da disputa entre um que pretende manter os demais sob sua tutela, e os demais que não desejam viver sob tutela alguma para realizar todas as tropelias, brutalidades, roubos e assassinatos de que são capazes;

* Não esqueças que os patrícios que hoje se aliam a nós para derrotar, subjugar, roubar ou assassinar outros patrícios, podem ser os mesmos que utilizarão seu novo poder para nos subjugar ou assassinar no momento seguinte;

* Jamais converses ou trates isoladamente com qualquer rei ou patrício porque, sem testemunhas, eles sempre serão capazes de mudar tuas palavras e fazer com que os arautos as espalhem como pensamentos ditos por ti, sem que tenhas ninguém para contraditá-los;

* Jamais imites qualquer tipo de conjuração, como fazem os patrícios, porque eles sempre serão capazes de acusar-te das maiores infâmias, embora sejam mestres nessas artes;

* Jamais aceites pecúnia (dinheiro) de qualquer rei, patrício, ou comerciante, porque isso será usado contra ti, seja para condenar-te e levar-te à morte, seja para te desmoralizar diante dos teus;

* Não confies em todos os plebeus que te procuram, porque muitos deles se vendem por qualquer pecúnia e são capazes de virar instrumentos de alguma conjuração contra ti;

* Cerca-te de plebeus de confiança, que demonstraram retidão nos combates sangrentos contra os bárbaros e também contra os patrícios.

A república brasileira, apesar de mais de dois mil anos após os escritos de Publicus, ainda conserva algumas das características da república romana. A luta de classes, embora não seja mais palco dos assassinatos em série praticados pelos patrícios romanos, mantém ativos os estratagemas e armadilhas utilizados contra os tribunos da plebe, algo que alguns dos tribunos atuais parecem haver esquecido. Como também parecem haver desprezado a capacidade que os novos arautos, a mídia, têm para deturpar palavras e atos, enquanto outros parecem haver acreditado que alianças são ações entre amigos, não acordos entre inimigos para derrotar outro inimigo. E alguns talvez tenham acreditado que, se utilizassem métodos idênticos aos dos aliados, estes seriam incapazes de utilizar-se disso contra eles.

Esse conjunto de erros permitiu aos patrícios brasileiros armar um processo judicial em que erros políticos, ligados a captação de recursos para campanhas eleitorais, fossem transformados em crimes de compra de votos de deputados. Nesse afã, o procurador geral da república, além de ser incapaz de apresentar os deputados “comprados”, se esmerou em tentar transformar indícios em provas, enquanto esquecia de dar seguimento a processos envolvendo deputados, senadores e governadores tucanos com figuras do crime organizado.

A grande mídia, por seu turno, age como partido político tentando mobilizar forças sociais e políticas para condenar os réus, de antemão. E o judiciário aceitou funcionar como uma arena romana, em que plebeus se confrontavam contra tigres e leões. Menos mal que hoje, ao invés de garras e dentes, os réus se confrontam apenas contra togas, argumentos e votos dos juizes, quase todos na expectativa de que os resultados do julgamento imponham uma derrota ao PT e à história de Lula nas eleições municipais deste ano.

 

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