Trinta anos atrás, em abril de 1980, mais exatamente na sexta-feira santa daquele ano,  três livrarias de esquerda foram atacadas a tiros na cidade de São Paulo. No bairro do Butantã, na entrada da USP, o alvo foi a Livraria e Editora Livramento; no bairro de Pinheiros, a Livraria Capitu; e na avenida Paulista, a Livraria e Editora Kairós. Contra as três foram disparados tiros nas vitrines em que estava exposto um poster de Che Guevara que era vendido com sucesso na época.

Trinta anos atrás, em abril de 1980, mais exatamente na sexta-feira santa daquele ano,  três livrarias de esquerda foram atacadas a tiros na cidade de São Paulo. No bairro do Butantã, na entrada da USP, o alvo foi a Livraria e Editora Livramento; no bairro de Pinheiros, a Livraria Capitu; e na avenida Paulista, a Livraria e Editora Kairós. Contra as três foram disparados tiros nas vitrines em que estava exposto um poster de Che Guevara que era vendido com sucesso na época.

A livraria Capitu foi a mais atingida, com 12 disparos que quebraram sua vitrine,  além de ter sido alvejada também por uma grande pedra. A Livramento foi atingida por um tiro que estilhaçou a vitrine. E a Kairós por dois tiros, que, por sorte, acertaram a grade que protegia a vitrine e a porta de madeira da loja, não danificando os vidros.

A livraria Capitu já havia sofrido um atentado exatamente igual dois dias antes, que fora assumido pelo CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Em telefonema à livraria após esse primeiro atentado, uma voz masculina ameaçou: “Somos do CCC. Foi só um tiro. Se continuarem vendendo material subversivo, da próxima vez colocaremos fogo nessa porcaria”. Cumpriram a promessa, com o ataque às três livrarias dias depois.

Como entender estes atentados no contexto em que eles aconteceram? Em fins dos anos 1970, começo da década de 1980, o Brasil vivia, após anos de ditadura, um período de retomada das atividades políticas e culturais, que havia se iniciado em 1977 com as manifestações estudantis de rua, em 1978 ganhara nova dimensão com as grandes greves operárias do ABC – as primeiras após o golpe de 1964 – e com a campanha da anistia, cujo ápice foi em 1979.

Um dos sinais dessa efervescência política e cultural foi o surgimento de muitas livrarias e editoras de caráter político, com perfil de esquerda e de oposição à ditadura, algumas vezes ligadas a grupos políticos. As três livrarias vítimas dos atentados de abril de 1980 tinham esse perfil e trabalhavam principalmente com livros de oposição ao regime militar. Estes livros de oposição eram, basicamente, livros de denúncias contra o governo, obras de parlamentares da oposição, depoimentos de exilados e ex-presos políticos, livros-reportagem, memórias, romances políticos, romances-reportagem e clássicos do pensamento socialista.

Uma época de atentados de direita

Ao contrário do que se quer fazer acreditar ultimamente, não houve nesse período um “grande acordo” político digno desse nome, ou seja, um acordo em que as partes tivessem um mínimo de condições de igualdade para celebrar o tal pacto. Tampouco a aprovação da Lei da Anistia em agosto de 1979 representou a “pacificação nacional”, como alguns ministros do STF querem fazer acreditar. Até mesmo porque a maior parte dos presos políticos não foi anistiada, mas saiu das prisões após revisão de suas penas em decorrência de mudanças na Lei de Segurança Nacional.

Os atentados mencionados são um indício de que não houve a tal pacificação. Até porque estes ataques às livrarias se inseriam em um quadro mais amplo, pois o país vivia um período em que estavam ocorrendo uma série de atentados de direita. Em quatro dias, entre  29 de março e 1º de abril de 1980, sete atentados terroristas ocorreram no Rio de Janeiro e em Porto Alegre, de acordo com a revista Veja daquela semana (a Veja na época era uma boa fonte de informações, já hoje…). Nestes dias foram atacadas, entre outras, as sedes do jornal Hora do Povo e do grupo Convergência Socialista, no Rio, e o plenário da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. O jornal Em Tempo listou mais de 25 atentados de direita realizados de junho de 1979 a abril de 1980.

Posteriormente, a partir do mês de julho daquele ano, começaria a onda de atentados a bomba contra bancas de jornal, com o intuito de intimidá-las e forçá-las a não vender mais os jornais da imprensa alternativa. A onda de atentados atingiu seu auge com a explosão de uma bomba de alto poder destrutivo na sede da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro, em 27 de agosto de 1980, que causou a morte da funcionária Lyda Monteiro da Silva.

A lembrança desses fatos põem em questão, juntamente com vários outros acontecimentos, o tal “grande acordo”, pois mostram que o embate político permanecia forte, com setores da direita encastelados no governo e dispostos a usar a força para se opor ao fim da ditadura, mesmo que este processo fosse em certa medida controlado pelo regime.

Falar em um “grande acordo” que teria resultado na Lei da Anistia é uma mistificação que querem empurrar agora pela nossa goela abaixo, construindo uma versão da história que serve a interesses bem determinados, particularmente a todos aqueles querem apagar da história a parte mais violenta da repressão durante a ditadura brasileira e garantir a impunidade para torturadores e seus mandantes.

Fontes utilizadas:

Arquivo do DEOPS, pasta 50-Z-341-2743. Arquivo do Estado de São Paulo.

“No fim de semana, tiros e pedras contra três livrarias da região”. Gazeta de Pinheiros, São Paulo, 11 de abril de 1980.

“Um tiro na livraria. E, pelo telefone, o aviso: foi o CCC”. Jornal da Tarde, São Paulo, 7 de abril de 1980.

“Dia de bombas”. Veja, São Paulo, nº 605, 9 de abril de 1980.

“Cinco atentados em poucos dias”. Movimento, São Paulo, nº 249, 7 a 13 de abril de 1980, p. 2.

“Nova moda do terror: balas contra livrarias”. IstoÉ, São Paulo, 16 abril de 1980, p. 20-21.

“Mais de 25 atentados do terror”. Em Tempo, São Paulo, nº 104, 17 a 30 de abril de 1980, p. 24.

Brasil dia-a-dia. Edição especial do Almanaque Abril. São Paulo, Editora Abril, 1990, p. 160.

*Flamarion Maués é editor de livros e historiador.
 

 

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