Talvez seja duro para os socialistas e comunistas brasileiros, numa situação mundial em que o capitalismo dos países desenvolvidos coloca em evidência suas contradições mais profundas, ouvir dizer que, para o desenvolvimento do Brasil, ainda está colocada na ordem do dia a utilização do capital. Não é fácil, no momento em que se proclama que um outro mundo é possível, aceitar que o resultado mais palpável do desenvolvimento desigual do capitalismo é a necessidade de empregar o capital para desenvolver as forças produtivas, mesmo que houvesse ocorrido uma revolução política no país, dirigida pela esquerda.

Talvez por isso, alguns economistas vulgares, assim como socialistas e comunistas ingênuos, pensem ser possível manejar e empregar o capital e, ao mesmo tempo, dispensar os capitalistas. Não esqueçamos que, nas primeiras décadas do século 20, vieram à luz diversas teorias sobre a acumulação primitiva socialista, justamente diante da realidade inesperada das revoluções dirigidas pelos comunistas haverem ocorrido em países atrasados, nos quais a acumulação capitalista era incipiente.

Tais teorias não levaram em conta, como dizia o velho Marx, que o processo de valorização ou acumulação do capital tinha como resultado principal a produção de capitalistas e de trabalhadores assalariados.

Donde se inferia que o capital teria que ser, ao mesmo tempo e necessariamente, personificado pelo capitalista, sendo absolutamente errado pensar que se poderia precisar do capital, mas não dos capitalistas.

No caso brasileiro a situação ainda é mais complexa. Aqui não houve qualquer revolução política. A hegemonia econômica está nas mãos dos capitalistas. A hegemonia ideológica é amplamente exercida pelas idéias burguesas. E a fragmentação social promovida pelo neoliberalismo ainda não foi recomposta. Nessas condições, é relativamente fácil proclamar que o programa democrático-popular, como estratégia para o socialismo, teoricamente praticado pelo governo dirigido pela esquerda, estaria falido. As associações de empresas estatais com empresas privadas mostrariam que o Estado estaria sendo utilizado para reforçar a acumulação dos grandes capitais, em especial dos setores financeiros, que continuam praticando juros indecentes e especulando com a dívida e com o câmbio.

Ao invés de reforçar as empresas estatais e empregá-las para ampliar a participação dos médios e pequenos capitais, assim como das cooperativas e economias solidárias dos trabalhadores, e realizar um desenvolvimento industrial diversificado, o Estado estaria atuando apenas como agente do desenvolvimento projetado pelo grande capital, em especial do capital oligopólico estrangeiro presente no país.

A proclamada radicalização da democracia, tanto em termos econômicos, quanto sociais e políticos, também não passaria de um desejo irrealizado. As ações para democratizar o capital, reforçando as micros e pequenas empresas, e rompendo com os oligopólios, não passariam da redução formal de alguns impostos e dos procedimentos burocráticos. A oportunidade de assentar rapidamente cerca de dois milhões de camponeses sem-terra, transformando-os em produtores agrícolas familiares, aumentando a seguridade alimentar de todo o povo e reduzindo as pressões inflacionárias, estaria sendo perdida por razões que a própria razão desconhece.

As ações de democratização social continuariam restritas aos programas de redistribuição de renda através do Estado, enquanto a democratização política pareceria vagar na dependência da correlação de forças, que pouco teria mudado com a famosa política de acumulação de forças. Em especial porque a atividade institucional dos partidos de esquerda teria substituído o trabalho na base social popular pelo trabalho de administração política institucional do capitalismo, tanto nos parlamentos, quanto nos governos estaduais e municipais.

Esse tipo de avaliação engloba aspectos contraditórios, com desdobramentos políticos diversos. Um relaciona-se com a possível falência do programa democrático-popular. Isto significaria que a revolução burguesa no Brasil fora concluída, sendo necessário substituir o programa democrático-popular por um programa socialista.  Outro relaciona-se com a possível incapacidade do governo dirigido pela esquerda aplicar o programa democrático-popular.

A tentativa de substituição do programa democrático-popular por um programa socialista pode ter como consequência política uma barafunda incalculável. A esquerda brasileira jamais acertou as contas teóricas com as experiências históricas socialistas, em especial as ocorridas após a revolução russa de 1917. E se formos tomar como parâmetros as experiências atuais, como a chinesa, a vietnamita e, agora, a cubana, acabaremos chegando à conclusão que seus programas socialistas de economia de mercado somente têm como diferença, aliás essencial, em relação a nosso programa democrático-popular, o fato de que fizeram uma revolução e os comunistas dirigem um Estado revolucionado, e não um governo sitiado.

Por outro lado, a avaliação de que o governo dirigido pela esquerda é incapaz de aplicar o programa democrático-popular, mesmo que seja apenas por defensivismo, pode ter como desdobramento político tomá-lo como adversário da perspectiva socialista e, portanto, passar à oposição a ele. Neste caso, no atual quadro de divisão real das forças políticas brasileiras, o cenário mais provável é que essa oposição socialista migre para além da acomodação à ordem burguesa, seja social democrata ou social liberal, e objetivamente se alie à oposição
neoliberal.

De qualquer modo, a complexidade da situação brasileira exige atenção aos problemas colocados por aquele tipo de avaliação. Mais do que antes, no caso específico do governo Dilma, torna-se indispensável sistematizar os pontos principais do programa democrático-popular a serem implantados. Exemplos desses pontos são o corte acentuado dos juros, a adoção de uma política cambial que faça frente à desvalorização artificial do dólar, a implantação de política de
industrialização estatal e privada, combinada ao rompimento dos oligopólios estrangeiros e nacionais, o assentamento massivo de sem-terra para a ampliação da produção de alimentos, e uma política efetiva de democratização do capital, com o reforçamento das micro e pequenas empresas e das cooperativas e empresas solidárias.

A rigor, todas essas medidas são democrático-burguesas e estão longe de serem radicais. Mas são estratégicas para ampliar a base social de apoio do governo e lhe dar sustentação no tratamento das reformas políticas democráticas reclamadas pelo povo brasileiro.

No caso específico dos partidos de esquerda, sem descurar da disputa institucional, torna-se cada vez mais estratégico voltar-se, organizada e planejadamente, para a base popular da sociedade. Ou criam raízes no chão das fábricas, nas comunidades residenciais, nas associações comunitárias e em outras formas de vivência das camadas trabalhadoras e populares, ou estão ameaçadas de assistir à emergência de lutas de massa contra elas e contra o governo que apóiam. A direita está aprendendo rapidamente a mobilizar massas, dos mais diferentes tipos. E isso não é tão difícil, porque ainda abundam a miséria, a exploração desenfreada e as injustiças.

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