por Pedro Cafardo

“Trabalhadores do Brasil!” Getúlio Vargas costumava começar seus pronunciamentos com esse chamamento, que parecia demonstrar alta afinidade com as causas trabalhistas. A verdade histórica, porém, exige um julgamento mais rigoroso sobre a imagem de Vargas como reformador social coerente e consistente.

Essa cautela na análise do legado social de Vargas é sugerida pelo historiador americano John D. French, no livro Afogados em Leis, que acaba de lançar pela Editora da Fundação Perseu Abramo. French, doutor em História do Brasil pela Universidade de Yale e atualmente professor da Universidade de Duke, na Carolina do Norte, foi fundo no estudo da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o conjunto de leis lançado em 1º de maio de 1943 por Getúlio Vargas.

O brasilianista americano recusa a idéia de que Vargas tinha boas intenções e um projeto reformista na área social. Essa visão, aliás sempre combatida pela esquerda brasileira, seria muito mais derivada da retórica do presidente do que de sua atuação concreta.

French vai buscar fatos do segundo governo Vargas (1951 a 1954) para comprovar sua tese. Depois de uma campanha em que criticou duramente a “perversão da CLT” durante o governo anterior de Eurico Gaspar Dutra, Vargas assumiu o governo e nomeou seguidamente ministros reacionários para a pasta do Trabalho. O primeiro foi Dalton Coelho, líder do PTB, seu aliado próximo, mas sem ligações com a classe trabalhadora. O segundo, Segadas Vianna, mantinha posições políticas repressivas e conservadoras sobre as questões trabalhistas. Só mesmo por pressões populares Vargas acabou nomeando João Goulart para o ministério, em 1953.

Goulart, que viria a ser presidente da República em 1961, com a renúncia de Jânio Quadros, é descrito como um parlamentar inexperiente e passivo, um homem cuja carreira até então havia transcorrido à sombra de seu vizinho Getúlio Vargas. Por isso, embora Goulart fosse nitidamente de esquerda, sua nomeação não representava uma virada no sentido de ação social transformadora, mas um reforço na estratégia populista de Vargas.

Afogados em Leis é um título apropriado, considerando-se o conteúdo da argumentação do professor French. Diz muito sobre o passeio do historiador americano pelo trabalhismo brasileiro. O autor declara-se atônito diante da extraordinária liberalidade com a qual a CLT estabelece direitos e garantias para os trabalhadores urbanos e suas organizações. E também com o cuidado com que os formuladores se esforçaram para abranger todas as possíveis eventualidades de conflitos.

A CLT é o resultado de 13 anos de trabalho – desde o início do Estado Novo até 1943 – de destacados juristas, que se reuniram para criar uma arena jurídica inteiramente nova no Brasil.

No papel, portanto, embora imposta de cima para baixo pela pena autoritária do Estado Novo, a legislação parecia perfeita. O problema é que essa extensa regulamentação, que persiste praticamente intacta até hoje, nem sempre pode ser cumprida nas relações reais do trabalho. “Se o mundo do trabalho de fato funcionasse de acordo com a CLT, o Brasil seria o melhor lugar do mundo para se trabalhar. E, se apenas metade da CLT fosse mesmo cumprida, o Brasil ainda seria um dos lugares mais decentes e razoavelmente humanos para aqueles que trabalham em todo o mundo.”

French observa que, apesar de sua abrangência, a CLT é aplicada de forma muito irregular nos diferentes setores e nas várias regiões do país. O aparente conteúdo da lei pode ser facilmente enfraquecido pelo seu não cumprimento e por interpretações jurídicas ou administrativas equivocadas.

Vista do Atlântico Norte, há um contraste quase esquizofrênico entre a lei e a realidade, teoria e prática, palavras e atos. É agudo o contraste entre o enfoque pragmático anglo-americano, por exemplo, e o dos latino-americanos na área do trabalho. Lá, a tradição geralmente fala em “relações de trabalho”, enfatizando a natureza ampla entre homem e trabalho. Na América Latina, especialmente no Brasil, tende-se a pensar em termos de “direito do trabalho” ou “direito social”, destacando-se o aspecto social das relações.

Prospera na América Latina, segundo John D. French, o desejo de uma perfeição jurídica em que a lei trabalhista está à frente da realidade social e econômica dos países. A lei tem mais uma função educacional do que normativa. O Brasil, com a CLT, é o caso mais extremado de intervencionismo estatal em matéria de legislação trabalhista. Historiadores interpretam leis do tipo da CLT como manifestações exemplares da patologia cultural latino-americana, onde é comum um procedimento automático no sentido de evitar o processo de negociação coletiva frente a frente entre empregados e empregadores.

A CLT nem sempre é aplicada. Há um enorme abismo entre a lei e a realidade, porque o texto é um produto de bacharéis excessivamente teóricos e voltados para a realidade européia. De um lado, por ter sido outorgada, ela produziu um profundo rancor e cinismo entre os ativistas da classe trabalhadora. Por outro, pela visão irreal, estimulou o crescimento de um sentimento de desdém pela classe empresarial, tida como uma intervenção ridícula do governo nas relações entre capital e trabalho, que implica aumento dos custos de produção.

A análise do professor French, desenvolvida a partir de uma visão histórica, é bastante atual. O ministro do Trabalho, Francisco Dornelles, discute atualmente com as centrais sindicais um projeto no qual pretende privilegiar o negociado sobre o legislado nas questões trabalhistas. A idéia é manter na Constituição brasileira apenas os direitos trabalhistas básicos e permitir que todos os demais sejam negociados diretamente entre empregados e empregadores. Um exemplo: o direito às férias seria mantido na Constituição, mas o período anual de férias seria negociado diretamente por cada categoria profissional com seus empregadores.

O ministro enfrenta enormes resistências à sua idéia nos setores trabalhistas. Seu argumento, porém, vai na linha da análise de French, que indica a enorme distância entre o ideal e o real em matéria de relações do trabalho.

Por causa dessa distância, a tendência à conciliação é muito comum na Justiça trabalhista. Ela freqüentemente produz o que French chama de “justiça com desconto”. Mesmo ganhando a causa, o trabalhador é muitas vezes levado a fazer acordo com o empregador para receber um valor muito menor do que o inscrito nos direitos legais. Caso contrário, teria de enfrentar atrasos intermináveis por causa de sucessivas apelações, que podem prorrogar o processo por até 12 anos.

Ao falar do emaranhado das leis trabalhistas brasileiras, o autor foi buscar uma anedota contada pelo líder operário comunista brasileiro, Mário Couto, nos anos 50:

Um jogador profissional de pôquer, que não conseguia mais parceiros, inventou um novo jogo de cartas semelhante ao pôquer, que chamou de cricri. Escreveu um manual de regras e, com isso, conseguiu atrair de volta os parceiros.

No primeiro dia, estavam todos animadamente jogando quando um dos participantes milionários fez um royal, que é a maior jogada do pôquer. O jogador profissional tinha um jogo mínimo formado na mão, mas assim mesmo aceitou o desafio.

– Tenho o royal – disse o milionário ao mostrar as cartas.
– Mas eu tenho um jogo maior. Tenho cricri – retrucou o profissional.
– Não pode. Isso não existe no pôquer. O maior jogo sempre foi o royal.
– Nós estamos jogando pôquer moderno, portanto, devemos verificar a página 20, artigo 2, parágrafo 4º, capítulo 3.

Abriram então o livro de regras e lá estava: cricri ganha do royal.

Constatada a realidade, a jogatina continuou até que a situação se inverteu. O milionário fez o cricri e o profissional, o royal. No momento em que o adversário apresenta o royal, o profissional diz:

– Nós estamos jogando pôquer moderno. Vejam o que está escrito no manual, no capítulo 6, artigo 5, letra c, na segunda linha do parágrafo 1º .

Aberto novamente o livro, lá estava a ressalva: cricri ganha uma só vez por noite.

O líder comunista contou a anedota em uma assembléia de trabalhadores para ilustrar sua posição contrária à CLT, segundo ele um conjunto de leis feitas para proteger o capital e no qual sempre se encontra um artigo para prejudicar o trabalhador. Na verdade, a anedota espelha bem a complexidade da legislação, que, em caso de litígio, permite a qualquer uma das partes encontrar dispositivos legais que podem prorrogar por anos a fio a decisão definitiva.

Resposta

Trabalhadores no Brasil: Muitas Leis ou Ainda Famintos pela Justiça?

John D. French

Como ocorre com os atos legais, todo livro tem muitas leituras, nem todas elas acuradas e muitas delas longe de desinteressadas. Numa resenha do meu livro recente Afogados Em Leis (“Cultura política e trabalhismo: Brasilianista mostra diferenças entre lei e realidade nas relações do trabalho”), Pedro Cafardo distorce meus argumentos sobre o papel desempenhado pela Consolidação das Leis do Trabalho na definição dos direitos em vigor para aqueles que trabalhavam durante a República Populista (1945-1964). Cafardo acredita que o problema fundamental nas relações de trabalho brasileiras deriva da existência de um excesso de preceitos constitucionais e legais relativos ao trabalho, assim como de sua natureza excessivamente generosa. “O desejo de uma perfeição jurídica” no Brasil, Pedro Cafardo sugere, produziu uma “lei trabalhista [que] está a frente da realidade social e econômica.” Essa enorme distância entre o ideal e o real, esse abismo entre a lei e a realidade, ele continua, “produz o que French chama de ‘justiça com desconto’” para os trabalhadores.

“A análise do professor French, desenvolvida a partir de uma visão histórica, é bastante atual,” ele prossegue, à luz das recentes propostas do ministro do Trabalho Francisco Dornelles de superar a “rigidez” e o “engessamento” normativo nas leis trabalhistas. Cafardo defende a proposta governamental que “pretende privilegiar o negociado sobre o legislado nas questões trabalhistas. A idéia é manter na Constituição brasileira apenas os direitos trabalhistas básicos e permitir que todos os demais sejam negociados diretamente entre empregados e empregadores.” O preceito constitucional estabelecendo férias anuais, por exemplo, permaneceria escrito e garantido, mas a extensão das férias seria determinada pelas duas partes, sem intervenção governamental.

As reformas trabalhistas neoliberais de FHC, Cafardo observa corretamente, tem se defrontado com enormes resistências nos setores trabalhistas. Nas palavras da Secretária de Política Sindical da CUT, “FHC vem impondo mudanças nas relações entre capital e trabalho que se revelam perversas para os trabalhadores, traduzindo-se na flexibilização da legislação, abolição de direitos e conquistas e tendo por produto final a diminuição da participação dos salários na renda nacional. O sonho neoliberal,” Gilda Almeida de Souza conclui, “é abolir se possível todos os direitos e conquistas obtidas pelos trabalhadores ao longo do século XX, consagradas na Constituição, na legislação trabalhista e nas convenções coletivas de trabalho.”

Pedro Cafardo sustenta ter encontrado a explicação para essa oposição resoluta em Afogados em Leis: A CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. O movimento operário e a esquerda, diz ele, ainda acreditam nas boas intenções do pai da CLT, Getúlio Vargas, como um reformador coerente e consistente na área social. Baseados mais na “retórica do presidente do que [na] sua atuação concreta,” eles teriam sido incapazes de compreender as limitações e os vícios do sistema jurídico trabalhista brasileiro que são denunciados no meu livro. De fato, nesse ponto Cafardo distorceu meu argumento além de qualquer limite aceitável porque eu provo, com uma abundância de evidências, que os trabalhadores e os ativistas brasileiros sempre estiveram cientes dos problemas da CLT e do seu não cumprimento. Na verdade, eu demonstro uma tradição de comentários hostis – seja no auge da Era Populista sob Vargas e Goulart ou desde o “Novo Sindicalismo”– dirigidas ao sistema que violava a autonomia e a liberdade sindicais enquanto falhava em cumprir as suas promessas mais básicas de direitos e benefícios para os trabalhadores.

A leitura distorcida de Cafardo também o leva a ignorar minha reposta à questão fundamental: a situação dos trabalhadores seria melhor se a CLT não tivesse sido, por várias razões, formulada durante a Era Vargas? Com base na prática dos militantes sindicais, eu argumento que o conjunto de direitos estabelecidos na CLT – não importa com que cinismo, e o quão mal assegurados – proporcionaram armar vitais para os trabalhadores na sua luta de contestação aos abusos diários e aos maus-tratos por parte dos empregadores. Ao inserir um conjunto de normas legais públicas na esfera privada das relações empregador/empregado, o sistema de jurídico trabalhista estabeleceu um terreno no qual o povo trabalhador poderia fazer progressos – e efetivamente os fez – mas a partir das suas lutas, não como um presente vindo de cima.

Dentro desse espaço legal, os militantes operários e os sindicalistas tinham de agir sem ilusões sobre as leis trabalhistas como a CLT e sobre aqueles que as escreveram e as implementaram. Ao fazer isso, os sindicalistas, os juízes trabalhistas e os procuradores do trabalho honestos assumiram a defesa do princípio do respeito à lei, que é tão rotineiramente violada pelos poderosos no Brasil. A esse respeito, o atual governo FHC continua uma longa tradição na qual todo regime necessita ter os seus cínicos homens do poder na arena das relações trabalhistas, homens que sabem como “dar um jeito” em nome dos poderosos e dos bem estabelecidos. De fato, o sistema brasileiro de dominação sobre aqueles que trabalham sempre demandou, como meu livro sugere, o tipo de serviços prestados por Lalau, o presidente do TRT de São Paulo, a Eduardo Jorge e ao Planalto! Repressão, venalidade e violência às custas dos trabalhadores sempre foram um requisito para ascender ao topo do Império Legal brasileiro! Aqueles que realmente lerem Afogados em Leis também irá encontrar paralelos entre as políticas anti-trabalhadores dos ministros do Trabalho de FHC e as de Segadas Vianna, co-autor da CLT e ministro do Trabalho de Vargas no período 1951-1953, retratado de forma devastadora no meu livro.

Assim, não foram nunca ilusões sobre as boas intenções dos poderosos que inspiraram as ações dos líderes sindicais honestos e representativos brasileiros, que sempre reconheceram que a letra da lei não era nem a fonte das condições injustas vividas pelo povo trabalhador do Brasil, nem a solução para elas. Na verdade, a crítica de Pedro Cafardo sobre o sistema CLT se liga não às suas falhas para os trabalhadores, mas antes ao desdém sentido pela classe empresarial em relação àqueles preceitos “que implicam aumentos dos custos de produção.” Os líderes sindicais atuais, como Gilda Almeida da CUT, não são de modo algum ingênuos o bastante para abraçar a desregulamentação neoliberal do direito individual do trabalho. Ao contrário de Cafardo, eles vêem com muita clareza como tais propostas “tiram dos trabalhadores para encher o bolso daqueles que detêm o monopólio do capital, num momento em que os primeiros estão fragilizados pelo desemprego em massa e a crescente precarização dos contratos e condições de trabalho.”

Privatizar as relações trabalho pode apenas aprofundar o desequilíbrio de poder entre aqueles que vendem seu trabalho e aqueles que o empregam. “O papel da lei em sociedades capitalistas minimamente preocupadas com a democratização das relações socias,”Adalberto Moreira Cardoso nos relembra, “tem sido o de reconhecer explicitamente que, no mercado, o trabalho tem muito menos poder de barganha que o capital. . . O discurso hegemônico [neo-liberal] . . . supõe que essa diferença de poder é ‘da ordem das coisas’ e não pode ser artificialmente extirpada via legislação. Se a lei contraria o interesse do mais forte, ela é um incentivo à burla. O discurso hegemônico conclui: elimine-se a lei. Essa saída é, por princípio, inaceitável” (Sindicatos, Trabalhadores e a Coqueluche Neoliberal: A Era Vargas Acabou? [1999]: 156-7).

O que é necessário, sobretudo, é um compromisso governamental sério e efetivo com o cumprimento da lei e não seu cínico desrespeito em benefício dos empregadores, combinado com propostas para abolir mesmo aquelas normas legais que servem para identificar as piores práticas dos empregadores brasileiros. Como Cardoso destaca, “reformas são necessárias. A legislação é extemporânea de caduca em muitos aspectos. Mas sem reformas na estrutura sindical que permitam aos sindicatos aprofundar seu poder de base e, com isso, dar sustentação à contratação coletiva autônoma entre capital e trabalho, qualquer medida que vise a flexibilizar o uso do trabalho significará transferir para o trabalhador brasileiro, um dos mais mal pagos do mundo, o custo de ajuste na economia globalizada” (Cardoso 1999: 162).

`